Antigo líder guerrilheiro da minoria tutsi governa país desde 1994 e tem possibilidade de permanecer no poder até 2034. Campanha eleitoral durou só três semanas e teve apenas dois concorrentes desconhecidos da oposição.
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O presidente de Ruanda, Paul Kagame, foi reeleito para um terceiro mandato após obter cerca de 98% dos votos na eleição presidencial realizada nesta sexta-feira (04/08), segundo resultados parciais divulgados pela comissão eleitoral neste sábado.
Com 80% das cédulas contabilizadas, Kagame, que comanda o país desde o genocídio de 1994, soma 5,4 milhões de votos. A comissão estimou que 97% dos 6,9 milhões de eleitores votaram nestas eleições.
Antigo guerrilheiro da minoria tutsi, Kagame governa Ruanda com mão de ferro desde 1994 e, com o novo mandato, deve ficar inicialmente pelo menos mais sete anos no poder. Considerado um herói por alguns e um déspota por outros, o líder da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) enfrentou apenas dois concorrentes desconhecidos no pleito realizado nesta sexta-feira.
Os candidatos Frank Habineza, do Partido Democrático Verde (uma das poucas siglas de oposição toleradas no país) e Philippe Mpayimana, um independente, criticaram a campanha presidencial, que durou apenas três semanas. Segundo eles, autoridades locais de várias cidades sabotaram eventos de campanha e alguns casos intimidaram seus apoiadores.
Antes do pleito, Kagame já havia chamado a eleição de "mera formalidade". Segundo o presidente, o terceiro mandato já estava assegurado desde 2015, quando o povo votou num referendo para modificar a Constituição e conceder a Kagame a possibilidade de se candidatar a um terceiro mandato e, em caso de vitória, de concorrer mais duas vezes para mandatos de cinco anos. Dessa forma, o presidente poderá ficar no cargo até 2034.
Economia em crescimento
Kagame se tornou líder de fato de Ruanda em 1994, quando os rebeldes da FPR tomaram a capital do país, Kigali, e derrubaram o governo extremista hutu que havia desencadeado um genocídio que resultara na morte de 800 mil pessoas, especialmente membros da minoria tutsi e hutus moderados.
Legisladores nomearam formalmente Kagame presidente em 2000. Três anos depois ele seria eleito para o cargo pelo voto direto dos cidadãos, numa esmagadora maioria.
Kagame recebeu elogios internacionais por ajudar a reconstruir a economia do país após anos de genocídio. O ex-presidente dos Estados Unidos George W. Bush o chamou "um homem de ação" quando estava no cargo. "Agradeço o seu compromisso com a educação. E quero agradecer-lhe, senhor presidente, pelo seu entendimento de que a melhor forma de desenvolver uma economia é receber o capital privado", afirmou Bush.
Kagame é "um líder visionário", de acordo com o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair.
Além dos elogios de líderes internacionais, os números parecem estar a favor de Kagame: desde a virada do milênio, a economia do país cresceu cerca de 8% ao ano. E, de acordo com um estudo do Banco Mundial, Ruanda é o segundo lugar mais fácil de fazer negócios na África.
A pobreza está em declínio, 90% da população têm seguro de saúde e a taxa de mortalidade infantil caiu em dois terços desde 1998. Além disso, a corrupção percebida é a mais baixa em comparação com quase todos os outros países africanos. As mulheres são metade dos membros do Parlamento.
Num discurso televisionado após a divulgação dos resultados da eleição, Kagame prometeu continuar o crescimento econômico de Ruanda. "São mais sete anos para cuidar de questões que afetam os ruandeses e garantir que nos tornemos cidadãos que verdadeiramente estão [economicamente] em desenvolvimento", disse.
Repressão política
No entanto, críticos e grupos de direitos humanos acusam Kagame de reprimir a oposição política, além de sufocar a liberdade de expressão. Ele foi acusado de encarcerar, exilar e até assassinar seus críticos.
O ex-chefe da inteligência ruandesa Patrick Karegeya, que havia procurado refúgio na África do Sul, foi encontrado estrangulado num hotel em 2014. Nunca foi provado que o governo estivesse envolvido no assassinato, mas, poucos dias depois da notícia de sua morte, Kagame disse: "A traição traz consequências".
Duas décadas de ataques muitas vezes mortais contra opositores políticos, jornalistas e ativistas dos direitos humanos criaram um "clima de medo" na nação africana, afirmou a Anistia Internacional num relatório publicado no mês passado.
JPS/dw/afp/dpa/rtr/lusa
O genocídio de Ruanda
O genocídio de Ruanda, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: Timothy Kisambira
Estopim do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação de rádio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura" incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura esportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. Ele permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste do Congo.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do governo. Os rebeldes assumiram o controle da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o presidente de Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebês, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.