Empresas ocidentais usavam mão de obra barata da Alemanha Oriental
9 de maio de 2012Tudo começou com acusações contra o fabricante de móveis Ikea, segundo as quais os produtos vendidos pelo grupo sueco teriam sido produzidos, durante anos, por trabalhadores forçados. No dia 2 de maio, a rede de televisão sueca SVT transmitiu uma reportagem com depoimentos de antigos prisioneiros da República Democrática Alemã (RDA), a Alemanha de regime comunista.
Segundo os testemunhos, prisioneiros políticos da RDA teriam fabricado móveis da Ikea em prisões da antiga Alemanha Oriental até a queda do Muro de Berlim, no final de 1989. Este não seria um caso isolado, mas uma prática comum de que muitas empresas da Alemanha Ocidental também teriam tirado proveito, já que todos os prisioneiros na Alemanha Oriental eram obrigados a trabalhar.
"Os prisioneiros eram obrigados a fazer, sob as piores condições, o trabalho mais pesado e sujo, que mais ninguém queria fazer", diz o pesquisador Steffen Alisch, da Universidade Livre de Berlim, especialista em Alemanha Oriental.
A empresa Ikea quer agora saber se as alegações correspondem à verdade. Para isso, pretende pesquisar nos arquivos da polícia política da Alemanha Oriental, a Stasi. Em 2011, uma reportagem da televisão pública alemã WDR revelou que 65 locais de produção na então Alemanha Oriental haviam trabalhado para a firma sueca. Não se sabe, no entanto, a proporção de trabalho forçado usado para fazer móveis para a Ikea.
O trabalho forçado era planejado
Sabe-se, no entanto, que o trabalho forçado fazia parte da economia da RDA. Em meados dos anos 1980, havia no país 20 mil presos. Os prisioneiros representavam "apenas" 1% da produção industrial, mas o governo "não queria abrir mão deles", disse à DW Hildigund Neubert, responsável pelos arquivos da Stasi no estado da Turíngia. "Quando eram concedidos indultos, havia reclamações dos ministérios. Eles temiam que, sem esses trabalhadores, as metas econômicas não seriam alcançadas".
Pelo seu trabalho, os prisioneiros recebiam um salário miserável. Neubert diz ser difícil apurar as responsabilidades de firmas ocidentais em particular. Para ela, seria um gesto louvável se as empresas que lucraram com o negócio sujo do trabalho forçado fizessem doações a fundações como forma de restituição.
Não era segredo, mas era pouco conhecido
Era do conhecimento público que a RDA fabricava produtos para empresas ocidentais, que tiravam proveito dos salários baixos na RDA. A Alemanha Oriental via as exportações para o ocidente como oportunidade para obter divisa forte, que precisava em ritmo crescente.
Neste sentido, a RDA tinha acordos de cooperação com a Suécia e o Japão. "Com a Alemanha [Ocidental] um acordo formal teria sido impossível", diz a economista Maria Haendcke-Hoppe-Arndt, antiga funcionária do arquivo da Stasi. Isto porque, em nível oficial, a Alemanha Oriental queria evitar qualquer ligação com a Alemanha Ocidental. Por outro lado, o governo alemão-ocidental tinha interesse nas relações de comércio e em uma política de "mudança através da aproximação".
Por isso, a "troca" acontecia sob um complicado esquema indireto descrito assim por Haendcke-Hoppe-Arndt: "Se, por exemplo, a empresa de venda por catálogo Quelle precisasse de 10 mil máquinas de lavar, isso era registrado na Comissão Central de Planejamento e, depois, encaminhado para o ministério competente. Daí, o pedido ia para o Departamento de Comércio Exterior, que não produzia nada e era apenas responsável pela venda. Ou seja, as máquinas de lavar acabavam no plano de exportações sem que o nome Quelle aparecesse".
De combustível a aventais
"Havia acordos sobre quem poderia fornecer o quê e como", ressalta a jornalista Anne Worst, autora de Produtos do Leste para o Ocidente, um documentário abrangente da emissora pública alemã MDR. "Um local de encontro importante era a Feira de Comércio de Leipzig [no leste da Alemanha], por concentrar muitos empresários".
De acordo com Worst, 6 mil empresas da Alemanha Ocidental tinham ligações comerciais com a RDA. Entre elas, as empresas de venda por catálogo Quelle e Neckermann, a fabricante de calçados Salamander e a empresa de cosméticos Beiersdorf, mas também outras empresas menos conhecidas, como a fabricante de pilhas Varta e a Underberg.
Enquanto a então União Soviética fornecia ao país também de regime comunista petróleo a preços baixos, as exportações da Alemanha Oriental de produtos derivados do petróleo eram enormes, tal como as exportações de produtos químicos, de máquinas e de produtos têxteis.
A margem de lucro era grande. Anne Worst ficou particularmente impressionada com um exemplo dos anos 1970. Ao liberar uma grande quantidade de mercadorias de uma só vez, a RDA disponibilizou dez milhões de aventais: "A empresa Quelle comprou estes aventais por alguns centavos, colocou-os em pacotes de três e os vendeu no seu catálogo por 9,99 marcos alemães". Em poucas semanas, havia vendido tudo com um lucro de 30 milhões de marcos.
Interdependência
Os têxteis eram os produtos de exportação mais conhecidos da Alemanha comunista, mas não eram os mais exportados: "A RDA fornecia um incrível número de alimentos para o oeste. Carne de porco, legumes e vegetais, que, em parte, faltavam aos alemães-orientais. No que diz respeito a alimentos frescos, Berlim Ocidental inteira dependia dos produtos da Alemanha Oriental".
A exportação de produtos era possível através da chamada "produção permitida" [para a Alemanha Ocidental]. Matérias-primas, máquinas e planos eram entregues à RDA, que entregava os produtos já acabados ou processados. Parte da produção permanecia na Alemanha Oriental para incrementar o estoque das lojas Intershop. Estas vendiam produtos mais caros, de alta qualidade. Por não aceitarem o marco da Alemanha Oriental, eram uma forma de o governo arrecadar moeda forte.
Negócios secretos
Para além destas transações bastante burocráticas, havia outra área de relações comerciais que permanece largamente desconhecida. Em 1966, foi criado um departamento especial para a "Coordenação Comercial" no Ministério do Comércio Exterior. O seu diretor era Alexander Schalck-Golodkowski, que se tornou ministro do Comércio Exterior em 1975. Schalck-Golodkowski tornou-se famoso em 1983 por negociar com o então governador da Baviera, Franz Josef Strauss, uma linha de crédito para a RDA de vários bilhões de dólares.
O seu departamento, conhecido por "KoKo", abreviatura do nome em alemão, tinha como função juntar moeda forte de todas as formas possíveis. Em 1976, o departamento foi desmembrado, se tornou autônomo e se transformou em uma das instituições mais fortes no país.
Como o departamento conseguia dinheiro? Essa é uma "extensa área ainda a ser pesquisada", diz a jornalista Anne Worst.
Autor: Günther Birkenstock (gcs)
Revisão: Roselaine Wandscheer