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Projeto oferece cirurgia plástica gratuita para mulher vítima de violência

Marina Estarque, de São Paulo14 de abril de 2014

Para muitas mulheres, uma cicatriz é também a memória de uma agressão. Em São Paulo, um projeto piloto de cirurgia plástica oferece a chance de amenizar o sofrimento.

Vítima dos tiros do ex-marido, Roseneide passou 19 anos com dor. "Quando senti que podia de novo mexer o braço, chorei."Foto: DW/M. Estarque

Mais do que uma preocupação estética, uma cicatriz é a memória de uma agressão. Por isso, muitas mulheres vítimas de violência doméstica sonham em fazer uma cirurgia plástica reparadora que possa amenizar a permanente lembrança do ataque. É o caso de Jaqueline e Roseneide, operadas gratuitamente no SUS, através de um projeto da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP).

"Quando a operação terminar, eu vou ficar completa", diz Jaqueline, de 26 anos, que já passou pela primeira fase da cirurgia. Funcionária de um supermercado, ela foi esfaqueada na barriga pelo ex-namorado a caminho do trabalho, por volta das 11h30, num posto de gasolina em São Paulo, há quatro anos. Com o tempo, retomou a vida, mas o constrangimento social continuou. "Chegava toda encolhida ao vestiário do trabalho. Nunca usava biquíni. Agora já estou me sentindo bem melhor", afirma.

Além de sentir vergonha das cicatrizes, Roseneide passou 19 anos com dor. O ex-marido tentou assassiná-la, com dois tiros, quando ela tinha apenas 18 anos. Para se defender, Roseneide cobriu o rosto com um dos braços, que foi atingido pelas balas.

Foram anos de internações e cuidados hospitalares. "Tive que fazer cinco raspagens porque infeccionava e tinha que retirar a carne. Acabou ficando um buraco fundo, com a pele colada no osso. Também coloquei pinos, mas o corpo rejeitou. Todas as vezes que me internavam, eu me sentia magoada novamente", lembra Roseneide, que trabalha como operadora de caixa de supermercado e é mãe de quatro filhos.

Devido às sequelas da agressão, ela não podia fechar o braço nem apoiar o cotovelo, pois sentia muita dor. Hoje, aos 37 anos, finalmente pôde ser operada. "Quando senti que podia de novo movimentar o braço, chorei na mesa de cirurgia", conta. Dois meses depois da operação, as marcas ainda estão cicatrizando. Mas o efeito em Roseneide já é visível. "Estou mais confiante, agora uso manga curta tranquilamente. Nunca vai ficar 100%, mas melhorou bastante", afirma.

"Quando a operação terminar, eu vou ficar completa", diz Jaqueline, que foi esfaqueada pelo ex-namoradoFoto: DW/M. Estarque

Lançado há seis meses, o projeto, que é piloto no estado de São Paulo, realizou 11 cirurgias. Outras 11 estão agendadas. As pacientes se candidatam por telefone, são selecionadas e encaminhadas para a cirurgia.

Marcas psicológicas

Para muitas mulheres vítimas de violência doméstica, o sofrimento psíquico permanece por anos após a agressão. Segundo o presidente da SBCP, Prado Neto, o objetivo do projeto é também recuperar a auto-estima das mulheres. "Nós tentamos curar as cicatrizes físicas, mas acabamos atingindo as psicológicas", diz.

A secretária-executiva de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, Lourdes Maria Bandeira, afirma que é preciso acompanhar as vítimas depois do crime. "Nas delegacias há psicólogos, mas eles não são suficientes para dar conta da demanda. A própria Lei Maria da Penha prevê isso, mas não há efetividade", diz. Ela acrescenta que também os agressores deveriam receber tratamento, o que já acontece, mas de forma muito incipiente.

A secretária-executiva ressalta que muitos fatores contribuem para – uma vez mais – vitimizar e vulnerabilizar essas mulheres. Uma visão preconceituosa e machista, por exemplo, tende a culpá-las pelos crimes. No caso de Jaqueline, a primeira reação negativa veio logo na delegacia. "Sofri muito preconceito, o pessoal acha que a culpa é da mulher, dizem 'que se envolve com vagabundo'. Eles veem que é mãe solteira, que enfiaram uma faca, e fazem logo piadinha", conta.

Na delegacia, ela descobriu que o ex-namorado, com quem recém havia começado um relacionamento, usava nome falso e havia tentado assassinar outra mulher. "Ele tinha dado sete facadas na esposa, que ficou em coma, e estava foragido. Os policiais ficavam dizendo que eu namorava qualquer um, sem conhecer. Eu disse que a culpa não era minha, que ele é que não podia estar solto."

Por causa da cicatriz, Jaqueline evitava expor a barriga. "Agora já estou me sentindo bem melhor"Foto: DW/M. Estarque

Lourdes Bandeira diz que esse tipo de situação se repete com outras vítimas. "As delegacias e o Judiciário são muito frequentados por uma ideologia sexista. Isso faz com que as mulheres acabem sempre sendo, direta ou indiretamente, as culpadas", afirma.

Vida após o trauma

Na vida comunitária, as dificuldades permanecem. Para se preservar, Roseneide evita comentar o assunto. "Não costumo falar sobre isso, para não ficar lembrando. O complicado é que as pessoas olham e perguntam. No início, eu tentava esconder. Agora falo que foram dois tiros, mas não entro em detalhes. Fico constrangida. Quem não ficaria?"

Jaqueline também sofre com o julgamento que outras pessoas fazem da sua história. Após o ataque, decidiu não namorar mais. Ela teme a reação da família caso apresentasse outro homem. Por outro lado, as amigas a recriminam pela sua opção. "É difícil, viu?", confessa. Mas assegura que superou o ataque e que retomou uma vida normal. "Não vou dizer que não fiquei traumatizada. Na verdade, eu só confirmei o que já sabia: que homem não presta."

Lourdes Bandeira afirma que as mulheres vítimas de violência ficam marcadas, tanto pessoalmente quanto para a comunidade e os filhos. "Elas sentem muita vergonha. Por isso, é fundamental as operações, para que as mulheres possam ser reconstituídas." Mesmo com as cirurgias, o caminho da superação é longo. "Foram muitos anos para me recuperar. Mas já que fiquei viva, eu tinha que viver, né?", conta Roseneide, com lágrimas nos olhos. E garante: "Eu estou legal, estou batalhando".

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