A raiva é uma poderosa arma política. No Brasil, ajudou a agravar a crise. Cabe agora aos brasileiros derrubar esse muro de ódio: o antipetismo não serve como programa político nacional, escreve Astrid Prange.
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Caros brasileiros,
Alguém ainda se lembra de Miriam Cordeiro? A ex-namorada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ficou famosa nas primeiras eleições livres depois da ditadura militar em novembro 1989. Poucos dias antes do segundo turno ela fez uma acusação bombástica contra Lula: depois de um relacionamento extraconjugal, ele a teria forçado a fazer um aborto.
A denúncia, que foi ao ar no programa eleitoral do então candidato Fernando Collor de Mello, surtiu efeito: Collor, que disputava ponto a ponto nas pesquisas de opinião com Lula, ganhou as eleições.
O aborto que não foi feito foi a minha primeira lição na política brasileira. Aprendi: a briga pelo poder é feia e não tem limites.
Naquele tempo, parecia que eu estava num filme errado. Na Alemanha, depois de 40 anos de ditadura socialista na antiga "República Democrática Alemã", o Muro tinha acabado de cair. No Brasil, no entanto, depois de 25 anos de ditadura militar, o medo do socialismo dominava a campanha eleitoral.
Essa lição me marcou e revelou um mecanismo da política brasileira para mim: o acesso e a permanência ao poder tem limite. Se o povo vota "errado", ele tem que ser "corrigido". Parece que esse mecanismo funciona ainda hoje.
A campanha do ex-presidente Collor em 1989, apoiada pela Rede Globo, é um exemplo disso. O impeachment de Dilma, reeleita em outubro de 2014, é outro. Sem crime comprovado contra ela, o julgamento no Congresso brasileiro no dia 31 de agosto de 2016 virou um tribunal político que "corrigiu" o resultado das urnas.
O mesmo Congresso brasileiro que votou a favor do impeachment de Dilma rejeitou a denúncia contra o presidente Michel Temer. O vice de Dilma havia sido denunciado por corrupção pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Com essa votação, ficou evidente que o Congresso brasileiro combate o combate à corrupção. Os deputados que nos tempos do mensalão aceitaram dinheiro do governo do PT para votar a favor de programas sociais do governo desta vez aceitaram favores do presidente Temer para livrá-lo da investigação.
Vale ressaltar também que esse mesmo Congresso até hoje barra a tão pedida reforma eleitoral que mudaria as regras de votação de deputados e senadores. Essa reforma impediria a entrada no Congresso de representantes que não foram escolhidos pelo povo, mas pegaram carona nos candidatos mais votados.
Observo que o combate à corrupção perde força política quando ela não serve mais para combater o PT. Parece que a raiva contra o PT virou programa nacional. Lula na prisão, PT nunca mais?
Reconheço: a raiva é uma poderosa arma política. Como vemos na Europa, na Alemanha com ascensão da nova direita, ou nos Estados Unidos, ela consegue mobilizar milhões de pessoas. Mas cuidado: ela leva diretamente ao abismo.
Na Inglaterra, ela colocou o país no caminho do Brexit, uma decisão da qual cada vez mais britânicos se arrependem. Nos Estados Unidos, a raiva do Trump e seus seguidores faz o país lutar contra todos e todo mundo: "o establishment", "os chineses", "os mexicanos", "os muçulmanos", e cada dia aparecem mais inimigos.
No Brasil, a raiva levou o país a uma crise política e econômica que nem Dilma Rousseff teria sido capaz de produzir se tivesse ficado no Planalto. A raiva revela atitudes desumanas e perigosas, como a gravação transcrita de um operador de voo ao piloto que conduzia o Lula para a prisão em Curitiba: "Manda este lixo janela abaixo aí".
Caros brasileiros, por favor derrubem esse muro de ódio e raiva! O antipetismo não serve como programa político nacional. Lula na prisão não vai fazer o Brasil um país melhor. Melhor seria renovar nas próximas eleições o Congresso com candidatos que trabalhem pelo bem comum e não pelo bem próprio. Os brasileiros merecem representantes melhores e os seus votos não precisam de "correções" posteriores.
Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter: @aposylt.
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Ex-governantes na mira da Justiça
Réu em vários processos, condenado e preso, Lula faz parte de uma extensa galeria de antigos governantes acusados de corrupção que cumprem pena ou ainda batalham nos tribunais.
Foto: picture-alliance/AP-Photo/L. Correa
Park Geun-hye (Coreia do Sul)
Presidente entre 2013 e 2016, Park sofreu impeachment por realizar tráfico de influência. Em seguida, foi acusada de desviar milhões de dólares de fundos de serviços de inteligência do país para compras extravagantes, além de pedir propina a grandes empresas sul-coreanas, como a Samsung. Em 2018, foi condenada a 25 anos de prisão.
Foto: picture-alliance/AP Photo/K. Hong-Ji
O quinteto peruano
O ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000) foi preso em 2005 por crimes diversos, e quatro sucessores se viram ligados à Odebrecht: Alejandro Toledo (2001-2006) teve prisão decretada em 2017 e está nos EUA; Alan Gárcia (2006-2011), investigado, se matou em 2019; Ollanta Humala (2011-2016), preso em 2017, foi solto no ano seguinte; e Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018) está em prisão domiciliar.
Foto: Getty Images/AFP/P. Ji-Hwan/C. Bournocle/T. Charlier/ J. Razuri
Ricardo Martinelli (Panamá)
Presidente de 2009 a 2014, Martinelli foi preso em Miami em 2017 e extraditado a seu país no ano seguinte, onde era acusado de operar esquema ilegal de espionagem de adversários políticos durante seu governo e de receber subornos da empreiteira brasileira Odebrecht. O acordo de extradição exigiu que ele fosse julgado apenas pelo delito de espionagem, pelo qual foi absolvido em agosto de 2019.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Martínez
Carlos Menem (Argentina)
Presidente entre 1989 e 1999, o extravagante Menem foi mantido preso durante cinco meses em 2001 por envolvimento em um escândalo de venda ilegal de armas para a Croácia. Em 2013, foi condenado a sete de anos de prisão pelo caso. Em 2015, voltou a ser condenado por corrupção envolvendo o pagamento de propinas a servidores públicos. Por enquanto, um mandato no Senado lhe mantém fora da cadeia.
Foto: picture-alliance /dpa/S. Goya
Jacob Zuma (África do Sul)
Presidente entre 2009 e fevereiro de 2018, Zuma enfrenta pelo menos 18 acusações de corrupção, extorsão, fraude e lavagem de dinheiro. No dia 6 de abril de 2018, compareceu a um tribunal para prestar depoimento em um processo que o acusa de receber subornos na venda de armamento para o governo.
Foto: Reuters/S. Sibeko
Nicolas Sarkozy (França)
Presidente entre 2007 e 2012, Sarkozy enfrenta acusações de corrupção e financiamento ilegal de campanha. Em 2014, foi detido para prestar depoimento em caso de tráfico de influência envolvendo promessas a um juiz em troca de informações sobre processos. Em março de 2018, foi novamente detido para interrogatório, desta vez por suposta doação ilegal feita pelo antigo ditador líbio Muammar Kadhafi.
Foto: REUTERS
Um trio guatemalteco
O ex-presidente da Guatemala Alfonso Portillo (2000-2004) foi preso em 2010 por receber subornos do governo de Taiwan, e solto em 2015. Alvaro Colom (2008-2012) foi preso em março de 2018 por fraudes no sistema de ônibus da capital e solto cinco meses depois. Otto Pérez Molina (2012-2015) foi detido um dia após renunciar por fraude em esquema de importações e seguia preso até outubro de 2019.
Foto: AP
José Sócrates (Portugal)
Primeiro-ministro entre 2005 e 2011, Sócrates foi preso em novembro de 2014 por suspeita de corrupção, evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Segundo a Justiça, Sócrates beneficiou grupos empresariais enquanto esteve no poder e em troca recebeu 24 milhões de euros. Permaneceu na cadeia até setembro de 2015, quando passou para a prisão domiciliar. Em outubro de 2017, foi denunciado por 31 crimes.
Foto: Reuters
Ehud Olmert (Israel)
Premiê entre abril de 2006 e março de 2009, Olmert foi condenado em 2014 por aceitar subornos de construtoras quando era prefeito de Jerusalém. Nos meses seguintes, foi condenado em outros processos. Começou a cumprir pena em fevereiro de 2016 e deixou a prisão 16 meses depois, em liberdade condicional. Ele ainda aguarda o resultado de recursos.
Foto: Getty Images/AFP/G. Tibbon
Svetozar Marovic (Sérvia e Montenegro)
Presidente entre 2003 e 2006 da extinta Comunidade da Sérvia e Montenegro, Marovic foi preso em 2015 por envolvimento em uma rede de corrupção na administração da cidade de Budva. Em 2016, foi condenado a três anos e dez meses de cadeia por um tribunal de Montenegro. É considerado foragido pela Justiça. Vive hoje na vizinha Sérvia e é alvo de um pedido de extradição.
Foto: picture-alliance/AP Photo/D. Vojinovic
Ivo Sanader (Croácia)
Primeiro-ministro entre 2003 e 2009, Sanader foi acusado de receber suborno durante a negociação de empréstimo com um banco austríaco. Fugiu da Croácia em 2010. Extraditado em 2011, foi condenado a dez anos de prisão. Foi solto em 2015, após sua condenação ser anulada. Ainda enfrenta outras investigações e em 2017 voltou a ser condenado a quatro anos e meio de prisão por outro caso de corrupção.
Foto: AFP/Getty Images
Khaleda Zia (Bangladesh)
Primeira-ministra entre 1991 e 1996 e novamente entre 2001 e 2006, Khaleda Zia foi presa em fevereiro de 2018 após ser condenada a 17 anos de cadeia por corrupção e desvio de doações internacionais destinadas a um orfanato. Sua defesa afirma que as acusações têm motivação política.
Foto: picture-alliance/dpa/AP Photo/A. M. Ahad
Vlad Filat (Moldávia)
Primeiro-ministro da Moldávia entre 2009 e 2013, Filat foi acusado de embolsar mais de 200 milhões de euros em um esquema de fraude bancária. Durante seu governo, três bancos do país concederam 1 bilhão de euros em empréstimos para empresas de fachada, lesando milhares de correntistas. Foi preso em 2015 e no ano seguinte foi condenado a nove anos de prisão por corrupção e abuso de poder.
Foto: picture-alliance/dpa
Fernando Collor (Brasil)
Em agosto de 2017, o ex-presidente Collor (1990-1992) se tornou réu por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa no âmbito da Lava Jato, acusado de cobrar propina em negócios envolvendo a BR Distribuidora. Em maio de 2019, foi denunciado também por peculato. Collor é senador e seus processos correm no Supremo Tribunal Federal.
Foto: picture-alliance/dpa/C. Gomes
Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil)
Em janeiro de 2018, o ex-presidente Lula (2003-2010) foi condenado em 2ª instância por corrupção e lavagem de dinheiro, no âmbito da Lava Jato, acusado de receber como suborno um apartamento no Guarujá. Detido em abril de 2018, ele já teria direito a ir ao regime semiaberto, mas segue preso. Em fevereiro de 2019, foi condenado em 1ª instância, desta vez envolvendo reformas num sítio em Atibaia.