Quadro do "Tesouro de Munique" leiloado em Londres
Stefan Dege (jvr)25 de junho de 2015
Max Liebermann pintou "Dois cavaleiros na praia" em 1901. E o passeio litorâneo acabou em odisseia: confiscada após ser identificada como arte saqueada, a tela foi leiloada em Londres por 2,6 milhões de euros.
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Dois cavaleiros trotam à beira-mar, de botas, boné e jaqueta. Um dos cavalos passeia tranquilo, enquanto o outro saltita sobre as ondas que batem na areia. Essa é uma das muitas cenas praieiras que Max Liebermann (1847-1935) captou em pinceladas espessas, em suas telas a óleo.
A costa holandesa do Mar do Norte frequentemente atraiu os impressionistas, admirados com a luz, as pessoas e a paisagem da região. Liebermann foi cofundador da Secessão de Berlim e presidente da Academia Prussiana de Arte. Ele e sua família foram perseguidos pelos nazistas. No entanto, o artista não poderia imaginar as peripécias políticas, jurídicas e penais por que passariam seus Dois cavaleiros na praia.
A descoberta do "Tesouro de Munique", três anos atrás, foi uma tremenda sensação no mundo das artes plásticas. Entre as centenas de obras de arte amontoadas no apartamento do idoso colecionador Cornelius Gurlitt encontrava-se esse quadro de Liebermann, que o Estado da Baviera tomou sob custódia.
Analistas de proveniência, integrando uma força-tarefa federal, iniciaram investigações, e em 2014 concluíram "com grande probabilidade" tratar-se da assim chamada raubkunst, ou "arte saqueada" – obras confiscadas, extorquidas ou roubadas pelos nazistas, geralmente de proprietários judeus.
Assim, a pintura de Liebermann foi restituída aos herdeiros do dono original. E, pouco mais tarde, colocada no mercado de arte e arrematada por 2,6 milhões de euros na casa de leilões Sotheby's, de Londres.
Vítima da ganância
Já em 1954, nove anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, os Cavaleiros retratados em 1901 constavam da retrospectiva Liebermann no museu Kunsthalle de Bremen. Até 1960, eles ainda foram vistos em exposições em Berlim, Recklinghausen e Viena. "Na época, ninguém levantou a acusação de que se tratasse de raubkunst", comentou em tom crítico o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung.
Segundo o catálogo das obras de Liebermann, o primeiro proprietário de Dois cavaleiros na praia teria sido o judeu David Friedmann, fabricante de tijolos e colecionador de arte de Wrocław, na Polônia. A tela teria estado em sua posse pelo menos até 1928. Porém a partir de 1938 a família Friedmann sofreu a ameaça da perseguição pelo regime nazista, segundo consta do relatório de proveniência da força-tarefa federal.
Uma carta de 5 de dezembro de 1939 do conselheiro governamental de Wrocław, Dr. Ernst Westram, ao ministro de Economia do "Reich" nazista, Walther Funk, comprova o fato. Nela, Westram se informa sobre como se apoderar "legalmente" dos tesouros de arte de judeus abastados.
A avaliação oficial parece insuficiente ao conselheiro, em cuja opinião as obras de David Friedmann valeriam dez ou 15 vezes mais. Os nazistas proíbem o colecionador de vender seu acervo. Três anos depois, ele morre de causas naturais e o restante da família Friedmann perece no Holocausto.
Conrad Müller Hofstede, diretor do Museu de Belas Artes de Wrocław, arremata os Dois cavaleiros na praia num leilão por 1.600 marcos. Em 1942, revende a tela ao pai de Cornelius Gurlitt, Hildebrand, marchand do Terceiro Reich que muitos denominam "o negociante de arte de Adolf Hitler".
Após o término da guerra, o óleo de Liebermann é confiscado pelos americanos. Contudo já em 1950, diante da falta de documentação de proveniência, Hildebrand Gurlitt a recebe de volta, alegando possuir a obra desde 1933. Dessa mesma forma, centenas de peças acabam nas mãos de seu filho Cornelius. Quando este morre, em maio de 2014, o Museu de Arte de Berna, Suíça, herda seu tesouro artístico.
Destino desconhecido mais uma vez?
Quem entregou o quadro Dois cavaleiros na praia para ser leiloado em Londres foi o nova-iorquino David Toren. Lembranças suas acompanharam o advogado de 89 anos por toda a vida: o óleo ficava pendurado na casa de seu tio-avô, David Friedmann.
"A última vez em que vi a pintura foi no dia seguinte à 'Noite dos Cristais', em 10 de novembro de 1938", revelou Toren em entrevista à DW. "Meu pai foi preso pela Gestapo nas primeiras horas da manhã, assim como todos os homens judeus. Sabíamos que ele seria enviado para um campo de concentração."
Na época com 14 anos, Toren ficou sentado no quartinho onde estava o Liebermann. "Fiquei olhando o quadro por horas a fio, pois me mandaram esperar no quarto. Sempre gostei dele, porque adoro cavalos."
David Toren abriu ação contra o governo federal alemão e o Estado Livre da Baviera, exigindo a restituição da pintura de Liebermann. Ele rejeitou uma indenização: "Não aceito dinheiro dessa gente, quero o quadro de volta porque ele me pertence e faz parte da minha história", declarou à DW em 2014. "Não quero que pertença a mais ninguém."
Desde então, Toren mudou de opinião, até porque existe um grande número de outros descendentes de David Friedmann. "Tenho 90 anos e sou cego", citou-o a Sotheby's. Portanto, já não estava mais em condições de apreciar a obra, como nos anos de juventude.
O novo proprietário do quadro fez por telefone o lance vitorioso, de 2,6 milhões de euros. Quem ele é e onde pretende exibir sua nova aquisição permanece um segredo.
Caso Gurlitt: um thriller no mundo da arte
Em novembro de 2013, um rico acervo de obras de arte desaparecidas durante o nazismo foi encontrada no apartamento do colecionador Cornelius Gurlitt em Munique. Um ano depois, a novela cultural continua rendendo.
Foto: picture-alliance/dpa/Martin Gerten
Cronologia de um tesouro
Em setembro de 2010 funcionários da alfândega param um idoso num trem entre Zurique e Munique. Cornelius Gurlitt portava consigo uma quantidade de dinheiro suspeitosamente grande. Embora isso não seja proibido, os guardas da fronteira o denunciam às autoridades fiscais. Em 2011, uma revista no apartamento de Gurlitt em Munique leva a uma descoberta surpreendente.
Foto: picture-alliance/dpa/Martin Gerten
Em meio ao lixo
Entre o lixo e as latas de alimentos vencidas, espalhados pelo apartamento, os investigadores descobriram milhares de obras de arte dadas como desaparecidas durante a Segunda Guerra Mundial. Por trás dessa coleção de valor inestimável ocultam-se episódios envolvendo dor e injustiça profundas.
Foto: babiradpicture
Escândalo artístico do século
Deduz-se que se trata de obras saqueadas pelos nazistas: o regime e seus representantes confiscavam a assim chamada "arte degenerada" e roubavam os colecionadores judeus. A coleção contém quadros de Pablo Picasso, Henri Matisse, Marc Chagall, Paul Klee, Max Liebermann (na foto, "Dois cavaleiros na praia") e outros clássicos do modernismo. O nome Gurlitt já era notório no mundo da arte na Alemanha.
Foto: gemeinfrei
Confiscadas, roubadas, vendidas
Hildebrand Gurlitt, pai de Cornelius Gurlitt, era um comerciante de arte durante o nazismo. Ele negociou "arte degenerada" para o "Museu do Führer", a ser construído em Linz, e vendeu pinturas confiscadas de proprietários judeus ou de museus no exterior. Depois da guerra, alegou que sua coleção particular e todos os registros de negócios haviam desaparecido no bombardeio de Dresden em 1945.
Foto: picture-alliance/dpa
Um domador de leões faz barulho
Em 2011, o filho de Hildebrand Gurlitt, Cornelius, vende a obra “O domador de leão", de Max Beckmann. Uma etiqueta de 1931 da Galeria Flechtheim colada na parte de trás da pintura gera suspeitas no mundo da arte. Flechtheim, negociante de arte judeu, havia fugido da Alemanha em 1933, deixando para trás muitas obras de arte. A pintura foi leiloada por 864 mil euros.
Foto: Reuters
Em busca dos proprietários legítimos
Em novembro de 2013, a coleção de arte apreendida em Munique é divulgada. Desde 2011, o historiador de arte Meike Hoffmann (ao centro) é o encarregado de determinar a proveniência das pinturas e de encontrar os donos. Uma tarefa extremamente complicada, carregada de questões morais, legais e históricas.
Foto: Reuters
Quem é o dono?
Pesquisadores de proveniência, como Meike Hoffmann, procuram pela origem e a história de uma obra de arte. Pistas possíveis são etiquetas na parte de trás das pinturas, ou documentos de comerciantes de arte e casas de leilões. Cornelius Gurlitt herdou as pinturas de seu pai, mas descendentes de famílias judaicas afirmam ser os donos legítimos e exigem as obras de volta.
Foto: picture-alliance/dpa
Revisão da lei
Nos termos da legislação alemã, o caso Gurlitt é claro: o direito dos proprietários de recuperarem as obras saqueadas pelos nazistas expirou depois de 30 anos. A Secretaria de Justiça da Baviera propôs uma emenda da lei no tocante ao prazo de prescrição, para os casos em que os implicados tenham conhecimento de possuir arte roubada. O projeto está sendo examinado.
Foto: picture-alliance/dpa
Pressão crescente
Os governos da Alemanha e da Baviera prometeram esclarecer tudo sobre o caso Gurlitt, e designaram uma força-tarefa. Até agora pouco aconteceu: só duas pinturas foram identificadas como saque nazista. Os especialistas liderados por Ingeborg Berggreen-Merkel ainda estão investigando a origem das obras, mas alguns dos presumíveis herdeiros são idosos e podem não viver para ver o resultado.
Foto: DW/H. Mund
Espera incompreensível
David Toren, de 89 anos, está processando a Alemanha e o estado da Baviera. Ele quer de volta a pintura “Dois cavaleiros na praia”, de Max Liebermann, que pertenceu ao seu tio avô David Friedmann, morto pelos nazistas em 1942. Descendentes de colecionadores judeus que tiveram obras confiscadas estão ficando impacientes.
Foto: DW/S. Czimmek
Novela Gurlitt – parte dois
Novas manchetes agitam o mundo da arte: os advogados de Cornelius Gurlitt revelam uma série de pinturas de Monet, Manet, Corot, Courbet e Renoir numa casa aparentemente abandonada na Áustria, pertencente à família Gurlitt. A alegação é que as obras de arte são parte de uma coleção particular. Será que também essas podem ter sido saqueadas pelo regime de Hitler?
Foto: picture-alliance/dpa
Gurlitt cede
Meses depois, Cornelius Gurlitt faz um acordo com o governo alemão, permitindo que todos os quadros suspeitos de arte roubada pelos nazistas sejam submetidos a investigação da proveniência. Em troca, recebe de volta as obras apreendidas em 2012. Em 6 de maio de 2014, o colecionador morre em Munique, aos 81 anos de idade. Mas a novela não acaba aí.
Foto: picture-alliance/dpa/Martin Gerten
Museu suíço entra em cena
Surpreendentemente, Cornelius Gurlitt deixou sua coleção para o Museu de Belas Artes de Berna. No testamento, ele menciona as boas lembranças da temporada na Suíça. O governo alemão saúda esse último desejo, mas uma parte da família Gurlitt se sente preterida.
Foto: Kunstmuseum Bern
Documento controvertido
Dois primos de Gurlitt, não mencionados no testamento, encomendam um relatório psiquiátrico para determinar se o colecionador estava em seu juízo perfeito ao redigir o documento legal. O relatório é negativo, porém o testamento não é contestado. Em 24 de novembro de 2014, o Museu de Belas Artes de Berna confirma que aceita a coleção Gurlitt.