Processo deve passar pela Câmara e pelo Senado antes de atingir o mandato de Dilma Rousseff. Para resistir à pressão, presidente terá de contar com uma base aliada fiel, incluindo o PMDB, afirmam especialistas.
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A crise política no governo Dilma Rousseff pode ter atingido seu nível mais crítico com a decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, de acolher o pedido de abertura de um processo de impeachment contra a presidente. O possível resultado, porém, divide opiniões entre especialistas ouvidos pela DW Brasil.
O pedido de impeachment – apresentado em outubro pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal – acusa a presidente de cometer crime de responsabilidade fiscal, com base na reprovação das contas de Dilma em 2014 pelo Tribunal de Contas da União (TCU), incluindo as chamadas "pedaladas fiscais".
Para o jurista Ives Gandra Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie, o pedido aprovado por Cunha – ele mesmo sob risco de cassação – tem fundamentos legais para derrubar Dilma. Porém, a continuidade do processo não depende do aspecto jurídico. "A partir de agora, o julgamento será exclusivamente político", afirma o especialista.
Para resistir às pressões que estão por vir, a presidente terá de contar com uma base aliada fiel. Se o processo chegar ao plenário da Câmara, Dilma precisa do apoio de pelo menos 171 dos 513 deputados para ver arquivado o processo que pode acabar com seu mandato.
"Acho muito difícil que o governo não reúna essa quantidade de votos", diz Wagner de Melo Romão, professor do departamento de ciência política da Unicamp. "Dilma ainda tem uma força relativa dentro da Câmara." Segundo ele, a votação da meta fiscal nesta quarta-feira foi importante para mostrar que o "governo ainda tem gás".
Romão afirma que, caso o processo chegue ao Senado, o cenário é ainda mais favorável à presidente. "O governo tem uma base que não é exuberante, mas é minimamente sólida: tem a bancada do PT, do PDT, do PCdoB e mesmo do PSol, que já declarou que não vai avançar no processo de impeachment", diz o professor.
O especialista alerta que o processo de destituição de um governante não é um "rito sumário" e que, por isso, "as muitas etapas e tramitações podem sofrer resistência dos setores mais afinados com o governo". Romão não acredita que o impeachment será concretizado. "A minha impressão, hoje, é de que o processo será arquivado em uma dessas etapas."
A consultoria de risco político Eurasia Group também acredita que a presidente vai resistir. "Embora o apoio à saída de Dilma possa crescer, as facções pró-impeachment no Congresso estão longe da maioria de dois terços necessária para aprovar a moção no plenário", diz a empresa, em relatório divulgada nesta quarta-feira.
PMDB, uma incógnita
O próximo passo do processo de impeachment é a análise do pedido por uma comissão especial formada por 66 deputados, proporcional ao tamanho de cada bancada. Essa comissão vai dar um parecer pela abertura ou não do processo, que depois irá a plenário.
O PMDB, partido de Eduardo Cunha e do vice-presidente Michel Temer, tem a maior bancada da Câmara – e, por isso, grande poder de decisão nesse processo. Mas a posição que o partido adotará nas próximas etapas ainda é imprevisível, segundo os especialistas.
"Recentemente, o PMDB divulgou um documento chamado Ponte para o Futuro, preparando claramente uma proposta de um governo em transição. Foi feito pensando num pós-Dilma", cita o pesquisador Paulo Sotero, diretor do Instituto Brasil do Woodrow Wilson Center, em Washington, nos Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, o líder do PMDB na Câmara dos Deputados, Leonardo Picciani, discordou da decisão de Cunha, dizendo que ele se "equivocou em aceitar o pedido de impeachment" e que não há "motivo jurídico para isso".
Por esses e outros motivos, "a reação do PMDB a tudo isso ainda é uma incógnita", afirma Sotero, que se pergunta: "Que rumo tomará esse partido? Ele se associará ao pedido de impeachment? Abandonará Dilma?"
Timothy Power, diretor do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, no Reino Unido, afirma que "há vários PMDBs", e que o futuro do processo depende da composição da comissão especial.
"Se o presidente dessa comissão for do PMDB, o que é provável, não sabemos se ele segue a linha de Renan Calheiros, que é mais simpático ao governo, ou a linha de Cunha, por exemplo." Segundo Power, isso fará grande diferença.
Chance para o PT?
Para Sotero, o próprio PT pode optar por facilitar o processo de impeachment. "O PT pode pragmaticamente decidir que para seu futuro, hoje bastante comprometido, o impeachment ofereceria uma chance de ressurreição, já que colocaria no poder a oposição, ou forças que não o PT, para lidar com a atual situação, que é dificílima."
O pesquisador afirma que a conjuntura econômica é desfavorável para o partido da presidente. Para lidar com a crise, serão necessárias medidas de ajuste econômico "altamente impopulares", que terão um custo político para quem está no poder, aponta.
Pressão da sociedade
Sotero acredita ser um equívoco considerar o mandato de Dilma como liquidado. "O governo dela provavelmente está, mas a possibilidade de tirá-la do poder não é clara, nem certa", afirma.
Para o pesquisador, o processo de impeachment não é só uma construção política e parlamentar, mas depende muito da reação da sociedade. "É preciso sintonizar o movimento pró-impeachment no Parlamento com o movimento da rua."
O jurista Ives Gandra concorda. "Se o povo sair às ruas pedindo impeachment, haverá certamente um impeachment. Os deputados não querem ficar com sua imagem vinculada a um governo maculado", diz o especialista.
"A meu ver, o processo depende exclusivamente da pressão popular. É a sociedade que vai levar os deputados a apoiar ou não o impeachment. Que vai fazer com que eles percebam que o país está ingovernável."
Altos e baixos da trajetória política de Dilma Rousseff
Ela foi a primeira mulher a ocupar a Presidência da República. Antes disso, lutou contra a ditadura militar e foi ministra de Lula. Eleita, o adversário passou a ser a crise econômica e a pressão pelo impeachment.
Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Contra a ditadura
Dilma Rousseff começou a vida política ainda jovem. No final dos anos 60, integrou organizações de combate à ditadura, até ser presa em janeiro de 1970 e torturada por mais de 20 dias. Quando deixou a prisão, no final de 1972, abandonou a luta armada e se mudou para o Rio Grande do Sul – onde se formou em Economia e ajudou a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Foto: AP/Arquivo Público do Estado de São Paulo
Ao lado de Lula
Dilma se filiou ao Partido dos Trabalhadores (PT) em 2001, enquanto era secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul. Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, foi nomeada ministra de Minas e Energia. Em 2005, ela assumiu a chefia da Casa Civil no lugar de José Dirceu, após o escândalo do mensalão. A mudança marcou o início de uma reforma ministerial em meio à crise política.
Foto: Ricardo Stuckert/PR
"Ministra linha dura"
Enquanto era ministra-chefe da Casa Civil, Dilma anunciou a criação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007 – que acabou não se desenvolvento tanto quanto o esperado –, e assumiu a direção de iniciativas como o programa Minha Casa, Minha Vida. Em 2009, apresentou o marco regulatório do pré-sal, definindo as regras para a exploração das recém-descobertas reservas de petróleo.
Foto: A. Nascimento/ABr
Luta contra o câncer
Em abril de 2009, a então ministra foi diagnosticada com câncer linfático. Após cirurgia para retirada do tumor e meses de radioterapia, Dilma anunciou estar curada em setembro do mesmo ano, já como pré-candidata do PT à sucessão de Lula. Na ocasião, falou à DW sobre o câncer: "Se você se desarmar diante da doença, ela vence. Mas, se não, percebe que a vida não acabou e que pode até ficar melhor".
Foto: AP
De coadjuvante a presidente
Em outubro de 2010, Dilma deixou se der coadjuvante no cenário político para se tornar sucessora das políticas do ex-presidente. Contra o tucano José Serra no segundo turno, ganhou a disputa com cerca de 55 milhões de votos válidos, e se tornou a primeira presidente mulher da história brasileira. Dilma assumiu o posto em 1º de janeiro de 2011.
Foto: AFP/Getty Images/Evaristo Sa
Primeiro discurso na ONU
"Pela primeira vez, na história das Nações Unidas, uma voz feminina inaugura o debate geral. É a voz da democracia e da igualdade se ampliando nesta tribuna", disse Dilma na abertura da 66ª Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2011. Em seu discurso, exaltou o papel feminino na sociedade e na política, lamentou a ausência palestina e defendeu a reforma do Conselho de Segurança da ONU.
Foto: picture-alliance/dpa
Demissão de ministros
Dos 39 ministros que integravam a equipe da presidente eleita, oito deixaram seus cargos nos primeiros 14 meses de mandato, após escândalos deflagrados principalmente pela imprensa. Sete deles vinham do governo Lula, com exceção do ministro do Turismo, Pedro Novais. Dos oito que caíram, apenas Nelson Jobim, então ministro da Defesa, não estava envolvido em denúncias de corrupção.
Foto: AP
Inclusão social
Ao longo do primeiro mandato, Dilma deu continuidade a programas sociais do governo Lula, como Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida, e realizou o leilão do Campo de Libra, no pré-sal, destinando recursos para educação e saúde. Novos programas também foram criados, como Pronatec e Mais Médicos, este último alvo de duras críticas das entidades médicas, que responderam com protestos e paralisações.
Foto: picture alliance/AE
Corrupção na Petrobras
Em março de 2014, a Polícia Federal deflagou a Operação Lava Jato, que investiga um megaesquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras do país e dezenas de políticos – entre eles, os ex-ministros Edison Lobão e Antonio Palocci. O escândalo na estatal serviu de munição aos candidatos de oposição contra Dilma durante a campanha eleitoral daquele ano.
Foto: AFP/Getty Images/K. Betancur
Eleições acirradas
Dilma foi reeleita presidente em 26 de outubro de 2014, com 54,5 milhões de votos no segundo turno. Foi uma das eleições mais disputadas da história, com diferença de apenas 3,5 milhões de votos para o segundo colocado, Aécio Neves (PSDB). A campanha eleitoral foi marcada por ataques, escândalos e a morte de um dos presidenciáveis, Eduardo Campos (PSB), substituído por Marina Silva.
Foto: picture-alliance/dpa/Sebastião Moreira
Protestos e reprovação recorde
As manifestações de junho de 2013 apenas respingaram em Dilma. Em 2015, por outro lado, centenas de milhares de pessoas foram às ruas em todo Brasil para protestar especificamente contra o governo da presidente e os escândalos de corrupção. A gestão Dilma Rousseff, que chegou a ser aprovada por 73% dos brasileiros em pesquisa de 2011, viu essa taxa cair para 8% quatro anos mais tarde.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Orçamento com déficit
Em agosto de 2015, em guerra com o Congresso, o governo apresentou uma proposta de Orçamento para 2016 com previsão de déficit de 30,5 bilhões de reais, algo inédito. A decisão levou a agência de classificação de risco Standard & Poor's a retirar o grau de investimento do Brasil. Duas semanas depois, o governo anunciou o ajuste fiscal, aprovado pelo Congresso somente em dezembro.
Foto: picture-alliance/epa/F. Bizerra jr.
Pedaladas fiscais
No início de outubro, o Tribunal de Contas da União recomendou a rejeição das contas de 2014 do governo, devido às chamadas "pedaladas fiscais". A decisão é usada pela oposição para fundamentar um pedido de impeachment. Para reduzir despesas, Dilma anunciou o corte de oito ministérios, a extinção de 30 secretarias em todas as pastas e a redução em 10% do salário dos ministros e do seu próprio.
Foto: Reuters/U.Marcelino
Cunha: peça-chave do jogo político
Apesar de ser membro do PMDB, partido da base aliada, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, rompeu com o governo quando passou a ser investigado no escândalo da Petrobras. Em meio a denúncias de corrupção e ao aumento da pressão pela cassação de seu mandato, Cunha autorizou, em dezembro, o pedido de abertura de um processo de impeachment de Dilma. "Não me cabia outra decisão", afirmou ele.
Foto: reuters
Afastamento da presidência
Após cinco meses de debates acalorados e prolongadas sessões no Congresso – incluindo uma votação tumultuada na Câmara –, o processo de impeachment tem sua abertura aprovada pelo Senado em 12/05, marcando o ápice da mais grave crise política brasileira dos últimos tempos. Com isso, Dilma foi afastada da presidência por até 180 dias, enquanto enfrentaria julgamento por crime de responsabilidade.
Foto: Reuters/A. Machado
O impeachment
A etapa final do processo de impeachment – o julgamento no Senado – durou cinco dias, incluindo oitiva de testemunhas, a defesa pessoal de Dilma aos senadores e a votação final, que culminou no afastamento definitivo da petista da Presidência da República. Foram 61 votos favoráveis à cassação, ante 20 contrários. O Senado, porém, decidiu por manter o direito de Dilma de exercer cargos públicos.
Foto: Reuters/J. Marcelino
Discurso de despedida
"É o segundo golpe de estado que enfrento na vida. O primeiro, o golpe militar, apoiado na truculência das armas, da repressão e da tortura, me atingiu quando era uma jovem militante. O segundo, o golpe parlamentar desfechado hoje por meio de uma farsa jurídica, me derruba do cargo para o qual fui eleita pelo povo", disse Dilma, ao se despedir do cargo, em 31 de agosto de 2016.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Tentativa de se eleger ao Senado
Com os direitos políticos mantidos após o impeachment, Dilma concorreu ao Senado por Minas Gerais nas eleições de 2018. Ela recebeu 15,29% dos votos válidos, número insuficiente para se eleger, ficando em quarto lugar.
Foto: Reuters/W. Alves
Volta ao Congresso após o impeachment
Três anos após seu afastamento do cargo, voltou pela primeira vez ao Congresso em 4 de setembro de 2019, para o lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Soberania Nacional, que tem entre as principais bandeiras a luta contra as privatizações de estatais.