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Quando protestos ameaçam a democracia

18 de maio de 2020

Na Alemanha, a maior ameaça em tempos de pandemia não é o coronavírus, mas protestos impulsionados por teorias da conspiração e informações falsas e instrumentalizados pela extrema direita.

Idosa protesta em Berlim contra confinamento
Em Berlim, manifestantes vêm se reunindo todos os sábados para protestar contra medidas de isolamento socialFoto: picture-alliance/Geisler-Fotopress

Depois de mais de um longo mês vivendo sob o confinamento imposto para conter o avanço da pandemia de covid-19, a Alemanha começou seu processo de reabertura gradual no final de abril, início de maio. Primeiro foram lojas menores, depois escolas, cabeleireiros, zoológicos, museus e, desde da última sexta-feira, restaurantes. As regras variam entre os estados do país.

A abertura de bares e cinemas e grandes eventos continuam proibidos, assim como encontros entre mais de dois grupos de amigos ou famílias que moram em casas diferentes. No início, só duas pessoas de residências diferentes podiam circular juntas. A abertura para dois grupos de duas residências diferentes já é um avanço. Neste meio tempo, máscaras passaram a ser vestimenta obrigatória em espaços públicos.

Apesar das medidas restritivas em vigor, houve aqueles que ignoraram o confinamento. Ao retornar do trabalho num sábado ensolarado no fim de abril, me deparei com um parque lotado, vários grupos de jovens reunidos e nada de distanciamento. De meados de abril até meados de maio, a polícia registrou na capital alemã cerca de 4,5 mil infrações relacionadas ao confinamento, sendo 1,5 mil de estabelecimentos comerciais que abriram ilegalmente.

A pandemia trouxe ainda uma onda de protestos impulsionados por teorias da conspiração e informações falsas, promovidas em canais da chamada "mídia alternativa". Os atos começaram pequenos, mas foram ganhando força no decorrer do confinamento. Centenas de manifestantes passaram a se reunir nos finais de semana em várias cidades alemãs contra as medidas de isolamento, alegando que elas eram uma afronta aos direitos individuais.

Enquanto no Brasil milagres não comprovados da cloroquina são propagados, na Alemanha, conspiracionistas dizem que a covid-19 é um complô da indústria farmacêutica ou de Bill Gates. Para outros, há a tentativa de imposição de uma ditadura promovida pela chanceler federal Angela Merkel. Ou ainda: o coronavírus é uma grande mentira inventada para trazer refugiados para Alemanha sem que ninguém percebesse, já que todos estão trancados dentro de suas casas. 

A agressividade de grupos contra a imprensa também tem marcado esse período. Porém  aqui, diferentemente do Brasil, o governo constantemente tem repudiado esses ataques. No sábado foi a vez de Merkel destacar a importância da imprensa e do trabalho jornalístico para a democracia, num vídeo no qual fala claramente e com paciência explicando com palavras acessíveis conceitos básicos, como já tinha feito ao comentar a disseminação da covid-19.

Merkel ressaltou que a liberdade – tanto defendida pelos manifestantes que atacam jornalistas – depende de uma imprensa livre. "Por isso é ainda mais lamentável quando, mesmo aqui, em nossa sociedade democrática, repórteres e jornalistas são atacados", disse. "O trabalho dos jornalistas deve ser respeitado, valorizado e apoiado."

O vídeo de Merkel foi lançado no mesmo dia em que protestos novamente reuniram milhares de pessoas em várias cidades da Alemanha, apesar da ampla flexibilização das medidas de confinamento. O mais curioso é a mistura do público: o "cidadão de bem" que acredita em informações falsas caminha ao lado de descendentes de estrangeiros que propagam teorias de conspiração, que, por sua vez, estão junto com extremistas de direita e neonazistas e também uns poucos extremistas de esquerda perdidos no meio do grupo.

Para defender teorias absurdas e "garantir uma liberdade", que nunca foi de verdade retirada, ninguém parece se importar com o fato de estar ao lado de grupos que ignoraram a história alemã e minimizam os crimes cometidos pelo regime nazista, inclusive estrangeiros que costumam ser perseguidos por eles. Por "uma causa maior", defendida com argumentos mentirosos, manifestantes fecham seus olhos para a barbárie cometida pelo vizinho.

Os atuais tempos não são fáceis. A pandemia trouxe desafios para todos, com alguns mais e outros menos impactados. Sim, tivemos nossas possibilidades ilimitadas temporariamente restringidas – não somente por medidas impostas localmente, mas outras globais, como fechamentos de fronteiras. Porém, quando vejo os protestos na Alemanha, não tenho como não pensar no grau de ignorância e egoísmo desses grupos.

Centenas de milhares em todo o mundo são sempre privados dessas possibilidades ilimitadas, mesmo sem pandemia. São privados diariamente não somente de coisas materiais, mas de direitos básicos, por viverem em países em guerra ou ditaduras, por não terem acesso à educação ou saúde de qualidade ou ainda à água e luz, por se matarem de trabalhar e no fim receberem salários miseráveis ou simplesmente por serem mulheres. O mundo está cheio de exemplos, inclusive no Brasil e na própria Alemanha, há muitos que vivem com possibilidades extremamente limitadas.

Além disso, as medidas adotadas na Alemanha estão bem longe de representar uma ameaça à democracia, como vem ocorrendo em países como a Hungria, onde o governo se aproveitou do momento para ampliar seus poderes.

Na Alemanha, a maior ameaça em tempos de pandemia infelizmente não é o coronavírus, mas os próprios manifestantes. Alimentados por mentiras e insanidades, muitos são instrumentalizados por extremistas de direita, que têm como objetivo ampliar seu poder e avançar contra a democracia.

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Clarissa Neher é jornalista da DW Brasil e mora desde 2008 na capital alemã. Na coluna Checkpoint Berlim, escreve sobre a cidade que já não é mais tão pobre, mas continua sexy. Siga-a no Twitter.

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