Quem é Abdulrazak Gurnah, Nobel de Literatura 2021
Julia Hitz
8 de outubro de 2021
Escritor tanzaniano, nascido em Zanzibar e radicado na Inglaterra, Abdulrazak Gurnah fala sobre migração e a África para além da colonização, fugindo do clichê eurocentrista.
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Ler uma obra de Abdulrazak Gurnah, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2021, é como escutar histórias de migração nas quais a eterna mudança e a constante agitação são dadas como certas. Não é o típico conto de fadas eurocêntrico de integridade e continuidade nacional que se costuma ler. São histórias que envolvem reinventar-se, transformar-se e seguir em frente – através de países, continentes e identidades.
Zanzibar: ilha com história comovente
Nascido em Zanzibar em 1948, Abdulrazak Gurnah estava predestinado a vagar entre os mundos. A ilha onde cresceu é um verdadeiro cadinho de culturas, cujo destino foi moldado desde o século 10º pelo comércio no Oceano Índico – de escravos, especiarias e coco –, primeiro pelos persas e depois pelos árabes. Em 1861, Zanzibar se tornou um sultanato independente, e assim permaneceu até os britânicos assumirem o controle em 1890.
Gurnah se refere a essa Zanzibar em seu segundo romance Paradise (sem edição em português). A trama se passa na costa leste da África, logo antes de as potências colonizadoras assumirem o controle. Nas histórias de Gurnah, contudo, o foco nem sempre é nos colonizadores, mas sim nas relações com o mundo árabe e indiano. Desse modo, elas corrigem uma visão que conta a história africana apenas sob a perspectiva dos colonizadores e, portanto, em relação à Europa.
Civilização independente dos europeus
Com Paradise, Gurnah ficou entre os finalistas do Prêmio Man Booker em 1994, seu maior sucesso antes do Nobel. Estudiosos da literatura viram o romance como um espelho de Coração das trevas, de Joseph Conrad, que redireciona a visão dos colonizados na África para os colonizadores.
"Quero refutar a ideia de que o colonialismo europeu levou a África Oriental da inércia à civilização. A realidade é mais complexa, porque ocorreram muitas outras interações ao longo dos séculos, que continuam até hoje", disse Gurnah em entrevista durante o lançamento de seu livro By the sea (À beira-mar") em 2001.
"Retrato o colonialismo como uma destruição – não de algo mais harmonioso ou melhor, mas de uma realidade que foi resultado de interações entre diferentes culturas", aspecto esse geralmente ignorado pela historiografia, disse Gurnah ao jornal suíço Neue Zürcher Zeitung em 2001.
Migração para a fria e úmida Inglaterra
Com By the sea e seu antecessor Admiring silence, em que um narrador em primeira pessoa não identificado retorna a Zanzibar depois de 20 anos na Inglaterra, Gurnah se volta para a migração, que também faz parte da realidade de sua vida. Em 1964, a elite árabe, que por 200 anos governara a maioria africana em Zanzibar, foi derrubada. Em meio aos massacres que se sucederam, Gurnah acabou trocando Zanzibar pela Inglaterra.
Aos 21 anos, começou a escrever em inglês e não mais em suaíli, seu idioma materno. Gurnah estudou na Inglaterra e foi professor de literatura pós-colonial na Universidade de Kent por muitos anos, até recentemente. Em suas pesquisas, voltou-se para escritores como o Nobel nigeriano Wole Soyinka e o queniano Ngugi wa Thiong'o, que também estava entre os favoritos ao Nobel de Literatura deste ano.
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Escolha surpreendente do Comitê do Prêmio Nobel
Gurnah é o primeiro autor tanzaniano a receber o Prêmio Nobel e o primeiro escritor africano negro desde Wole Soyinka, premiado em 1986. Embora em grande parte desconhecido, o reconhecimento chega mais do que atrasado, comentou ao jornal britânico The Guardian Alexandra Pringle, sua editora de longa data na Bloomsbury. "Ele é um dos maiores escritores africanos vivos e ninguém nunca havia reparado nele. Isso me cortava o coração."
O próprio Gurnah não acreditou quando recebeu a ligação de Estocolmo. "Achei que fosse uma piada", consta do site do Prêmio Nobel. "Coisas desse tipo geralmente acontecem com semanas de antecedência."
Humor sutil
Thomas Brückner, tradutor dos livros de Gurnah para o alemão, valoriza sobretudo a sutileza do humor nos romances do escritor tanzaniano. "Ele escreve livros muito tranquilos, numa linguagem muito elegante, muito precisa, com uma observação muito atenta de suas personagens, de suas vidas interiores e também do que acontece em torno dessas figuras e, portanto, em torno do autor", disse à agência de notícias alemã DPA.
Brückner lamenta, porém, que de dez romances e diversos contos escritos por Gurnah, apenas cinco obras tenham sido traduzidas para o alemão – o último sendo Desertion, em 2006.
A última obra do autor faz inclusive referências à Alemanha. Lançado em 2020, Afterlives trata sobre o jovem Ilyas, que foi roubado dos pais pelas tropas alemãs, e anos depois retorna à aldeia natal para lutar contra seu próprio povo.
O mundo além do eurocentrismo
Abdulrazak Gurnah recebe o prêmio "por sua compreensão intransigente e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes", disse o secretário permanente da Academia Sueca, Mats Malm, ao justificar a escolha.
Em entrevista à Fundação Nobel, o próprio Gurnah afirmou que muitos refugiados africanos "não vêm para a Europa de mãos vazias". Entre os recém-chegados, está "muita gente talentosa e enérgica, que tem algo a oferecer".
Uma escolha que mostra, portanto, que já era hora de colocar uma outra perspectiva no centro das atenções. Dos 118 vencedores do Nobel de Literatura homenageados desde 1901, 95 vieram da Europa ou da América do Norte – mais de 80%. Gurnah é apenas o quinto africano a receber o prêmio.
Prêmios Nobel de Literatura desde 2000
Os laureados no século 21 não poderiam ser mais distintos. Entre eles, uma sarcástica dramaturga austríaca, o primeiro Nobel turco, um autor chinês controverso, um norueguês que escreve em dialeto minoritário.
Foto: picture-alliance/Effigie/Leemage
2023: Jon Fosse
Jon Fosse recebeu o Nobel por "suas peças e prosa inovadoras que dão voz ao indizível". Além de mais de 40 obras teatrais, o norueguês nascido em 1959 publicou romances, ensaios, coletâneas de poesia e livros infantis. Ele escreve em "novo norueguês", desenvolvido no século 19 a partir de dialetos rurais e falado por apenas 10% da população. Seus livros já foram traduzidos em mais de 40 idiomas.
Foto: Jessica Gow/TT/AFP
2022: Annie Ernaux
Autora de mais de 20 livros, Annie Ernaux é conhecida por seus romances autobiográficos e livros de memórias, em geral curtos e baseados em experiências de classe e gênero. Ao premiar a ffrancesa nascida em 1940, a Academia louvou a "coragem e acuidade clínica com que revela as raízes, estranhamentos e inibições coletivas da memória pessoal".
Foto: Ger Harley/EdinburghElitemedia/picture alliance
2021: Abdulrazak Gurnah
Abdulrazak Gurnah nasceu na Tanzânia em 1948 e desde os anos 60 mora na Inglaterra, onde lecionou Inglês e Literatura Pós-Colonial na Universidade de Kent. A Academia Sueca citou sua "dedicação à verdade e sua aversão à simplificação", em obras que "evitam descrições estereotipadas e abrem nosso olhar para uma África Oriental culturalmente diversa". "Paraíso" é um dos dez romances de sua autoria.
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2020: Louise Glück
A poeta americana Louise Glück foi agraciada em 2020 por sua "voz poética inconfundível que, com beleza austera, torna universal a existência individual". Nascida em Nova York, a escritora fez sua estreia literária em 1968 e, segundo o comitê, ''logo se tornou uma das poetas mais proeminentes da literatura americana contemporânea''. Desde 2011 um poeta não levava o Nobel.
Foto: Robin Marchant/Getty Images/AFP/picture alliance
2018: Olga Tokarczuk, 2019: Peter Handke
Como anunciado, a academia concedeu dois prêmios em 2019. A escritora polonesa Olga Tokarczuk recebeu o de 2018 pela "imaginação narrativa que, com paixão enciclopédica, representa o cruzamento de fronteiras como uma forma de vida". O austríaco Peter Handke ficou com o de 2019 pelo "trabalho influente que, com ingenuidade linguística, explorou a periferia e a especificidade da experiência humana".
2018: escândalos impossibilitam premiação
Em maio de 2018, a Academia Sueca comunicou que o Prêmio Nobel de Literatura não seria concedido naquele ano, depois que alegações de abusos sexuais e escândalos de crimes financeiros mancharam a reputação da organização. Na ocasião, a entidade informou que, no ano seguinte, dois prêmios seriam entregues. Foi a primeira vez desde 1949 que o prêmio não foi concedido.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Vergara
2017: Kazuo Ishiguro
O escritor britânico nascido no Japão Kazuo Ishiguro foi laureado com o Nobel de 2017. A Academia Sueca destacou a "grande força emocional" de sua obra. "Os escritos de Ishiguro são marcados por um modo de expressão cuidadosamente restrito, independentemente de qualquer evento que ocorra", disse a Academia. Entre seus romances mais famosos está "Os vestígios do dia", de 1989.
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2016: Bob Dylan
Em 2016, uma polêmica: o prêmio foi para um cantor e compositor, Bob Dylan. O astro da música folk e do rock foi escolhido por criar "novas expressões poéticas dentro da grande tradição musical americana". Após o anúncio, Dylan silenciou por algumas semanas, o que colocou em dúvida se ele aceitaria a homenagem. Por fim, ele disse que ficou sem palavras, mas optou por não ir à cerimônia.
Foto: picture alliance/dpa/J.Lo Scalzo
2015: Svetlana Alexievitch
Na figura de uma autora bielorussa, o Comitê do Prêmio Nobel reconheceu uma nova forma de autoria. Em suas reportagens e ensaios, Svetlana Alexievitch desenvolveu um estilo literário todo próprio, realizando entrevistas e adensando-as em emocionais colagens da vida quotidiana. Enquanto cronista do sofrimento humano, ninguém documentou a decadência da União Soviética como ela.
Foto: Imago/gezett
2014: Patrick Modiano
Guerra, amor, ocupação, morte são os temas que ocupam o ator francês Patrick Modiano, ao processar as lembranças de sua infância infeliz na Paris do pós-Guerra. O júri do Nobel o elegeu precisamente por essa "muito especial arte da memória". Há muito consagrado em seu país, até ser laureado ele era pouco conhecido em nível internacional.
Para a Academia Sueca, que concede o prêmio anualmente desde 1901, Alice Munro é uma "mestra da crônica contemporânea". Entre as características inovadoras dos contos da escritora canadense está o livre trajeto na linha do tempo. Uma colega americana a classificou como "o nosso Tchecov".
Foto: PETER MUHLY/AFP/Getty Images
2012: Mo Yan
O chinês Guan Moye é melhor conhecido por seu pseudônimo Mo Yan. O Comitê Nobel louvou nele um autor que, "com realismo alucinógeno, combina contos de fadas, história e presente". A decisão foi criticada pelo artista chinês Ai Weiwei, para quem seu compatriota era próximo demais do regime comunista.
Foto: picture-alliance/dpa
2011: Tomas Tranströmer
Em sua justificativa sobre Tomas Gösta Tranströmer, o júri louvou as "imagens comprimidas, esclarecedoras, que apontam novos caminhos para o real". Na década de 60, o poeta sueco trabalhou como psicólogo numa instituição para jovens delinquentes. Seus poemas foram traduzidos para mais de 60 idiomas.
Foto: Fredrik Sandberg/AFP/Getty Images
2010: Mario Vargas Llosa
O autor peruano Mario Vargas Llosa recebeu o Nobel por "sua cartografia das estruturas de poder e seus enérgicos retratos da resistência individual, da rebelião e da derrota". Na América Latina, ele ficou famoso pela frase, pronunciada na televisão: "México é a ditadura perfeita", assim como suas invectivas contra o ex-amigo Gabriel García Márquez, em 1976.
Foto: AP
2009: Herta Müller
Como mais recente laureada germanófona, a teuto-romena Herta Müller foi destacada por, "com a densidade da sua poesia e a franqueza da sua prosa, retratar o universo dos desapossados". Ela também critica em suas obras o autoritário regime Ceaușescu, que até 1989 geriu os destinos da Romênia. Entre seus romances editados em português estão "A terra das ameixas verdes" e "O compromisso".
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2008: Le Clézio
Segundo a Academia Sueca, Jean-Marie Gustave Le Clézio é "o autor da ruptura, da aventura poética e do êxtase sensorial", além de "estudioso de uma humanidade abaixo e acima da civilização dominante". Filho de uma francesa e de um nativo de Maurício, ele considera esse Estado insular no Oceano Índico sua "pequena pátria".
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2007: Doris Lessing
A britânica Doris Lessing publicou tanto romances e contos quanto peças teatrais. A Academia Sueca a saudou como "épica da experiência feminina, que, com ceticismo, paixão e força visionária, colocou à prova uma civilização fragmentada". A hoje nonagenária já se engajou contra a energia atômica e foi opositora eloquente do regime do apartheid na África do Sul.
Foto: AP
2006: Orhan Pamuk
Ao homenagear Istambul, o primeiro ganhador do Nobel da Literatura de nacionalidade turca "encontrou novas imagens simbólicas para o conflito e o entrelaçamento das culturas, em busca da melancólica alma de sua cidade natal". Ferit Orhan Pamuk é o escritor turco mais lido do mundo, com 11 milhões de livros vendidos e traduções em 35 idiomas.
Foto: picture-alliance/dpa
2005: Harold Pinter
O dramaturgo inglês Harold Pinter morreu de câncer pulmonar três anos após receber o Nobel. Com seus dramas, apontou o júri, ele "revelou o precipício sob a conversa fiada do dia a dia", penetrando "no espaço fechado da repressão". Tendo escrito também para a TV e o cinema, ele também foi ator e diretor de várias de suas peças.
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2004: Elfriede Jelinek
A autora austríaca Elfriede Jelinek recebeu o Prêmio Nobel pelo "fluxo musical de vozes e contravozes em seus romances e dramas", em que desmascara os clichês sociais. Um de seus temas centrais é a sexualidade feminina. O romance "A pianista" (1983) foi base para o filme homônimo de 2011, dirigido por Michael Haneke e com Isabelle Huppert no papel principal.
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2003: John M. Coetzee
Segundo o júri, John Maxwell Coetzee retrata "a participação do ser humano na diversidade da existência, de maneira muitas vezes atordoante". Além do Nobel, o autor da África do Sul já recebeu duas vezes o prestigioso Man Booker Prize. Seu romance mais conhecido, "Desgraça" (1999), que trata da era pós-apartheid, foi transformado nove anos mais tarde no filme "Desonra".
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2002: Imre Kertész
O sobrevivente de Auschwitz Imre Kertész foi laureado por uma obra que "contrapõe a frágil experiência do indivíduo à bárbara arbitrariedade da história". O judeu húngaro descreveu em seus romances os horrores dos campos de concentração. Em "Sem destino", uma das mais impressionantes narrativas sobre o Holocausto, ele trabalhou mais de 13 anos.
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2001: Vidiadhar Naipaul
Uma arte narrativa "em que ele conjuga uma percepção particularmente sensível com meticulosidade irreprimível, para nos obrigar a reconhecer a contemporaneidade das histórias reprimidas": assim o Comitê justificou a escolha de Vidiadhar Surajprasad Naipaul. O indo-britânico tomou como tema a liberdade do indivíduo numa sociedade em ocaso, em diversas regiões do mundo.
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2000: Gao Xingjian
O primeiro Prêmio Nobel da Literatura do século 21 coube ao chinês Gao Xingjian, escolhido por "uma obra de validade universal", marcada por "amargos insights e riqueza linguística", abrindo novos caminhos para a prosa e o teatro na China. Desde 1987 ele vive e atua em Paris como autor, dramaturgo e pintor.