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Quem continua lucrando com a escravidão no Brasil?

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
1 de março de 2023

Entre setores mais conservadores, persiste uma percepção de mundo baseada na desigualdade, que defende que pobre deve ser tratado como tal. E que, se esse pobre for preto e nordestino, o tratamento deve ser ainda pior.

Vinícola na região de Bento GonçalvesFoto: Zhao Yan/Xinhua/IMAGO

Falta de mão de obra.

Essa foi a desculpa que o Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG) usou para tentar justificar o fato de, no último dia 22 de fevereiro, 207 trabalhadores terem sido resgatados em condições análogas à escravidão em meio à colheita de uvas que seriam utilizadas pelas marcas Salton, Garibaldi e Aurora.

Mas o escárnio criminoso não parou por aí.

A nota emitida afirma que a falta de mão de obra que justificaria a escravização de mais de duas centenas de pessoas seria oriunda do que o CIC-BG chamou de "um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade".

Trocando em miúdos: de acordo com o CIC-BG, empresas do Rio Grande do Sul optaram por usar mão de obra escravizada por conta de programas como o Bolsa Família.

Percepção de mundo baseada na desigualdade

É impressionante como os setores mais conservadores do Brasil têm a capacidade de nos surpreender. Embora essa surpresa resida numa constatação muito simples: a permanência de uma percepção de mundo baseada na desigualdade, que defende que pobre é pobre e que é assim que deve ser tratado. E que, se esse pobre for preto e nordestino, o tratamento deve ser ainda pior.

Segundo os relatos obtidos, a promessa de salários superiores a R$ 3 mil (com alimentação e acomodações pagas) se converteu numa escala extenuante de 15 horas de trabalho, comida estragada, intimidação, impossibilidade de sair do alojamento em que estavam instalados, aquisição de dívidas, e castigos corporais – estes parcialmente modernizados: além dos espancamentos de sempre, o chicote deu lugar ao spray de pimenta e a choques elétricos.

Problema historicamente constituído

Infelizmente essa não é a primeira nem será a última vez na qual homens e mulheres são resgatados em condições análogas à escravidão no Brasil. No caso das vinícolas do Rio Grande do Sul, o Centro de Indústria, Comércio e Serviço que as representa nos lembrou que o problema é historicamente constituído.

Ao ler a nota que tenta justificar o injustificável, foi quase automático traçar um paralelo entre o CIC-BG e o Centro de Lavoura e Comércio (CLC), fundado no século 19 e que tinha entre seus principais participantes os maiores cafeicultores do país.

O CLC teve uma série de atuações, sendo um dos principais financiadores dos estandes brasileiros nas Exposições Universais a partir de 1881. Mas não era patriotismo ingênuo que fomentava as ações do CLC. Tais financiamentos tinham por objetivo defender perante o mundo que a lavoura era o futuro do Brasil (sobretudo a produção cafeeira). E que o Brasil da década de 1880 havia se modernizado: embora a produção agrícola continuasse usando mão de obra escravizada (disso eles não abriam mão), agora os homens e mulheres negros e escravizados trabalhavam de forma ordenada e asséptica.

É preciso dizer que, quando o CLC assumiu os estandes brasileiros nas Exposições Universais, o Brasil era a única nação soberana das Américas a manter a escravidão (Cuba e Porto Rico ainda eram colônias espanholas nesse período), num contexto em que o movimento abolicionista brasileiro ganhava uma capilaridade que já apontava o fim da escravidão como "uma questão de tempo" (e obviamente de luta da população negra).

Pois é, mais de 140 anos separam as ações desses dois centros brasileiros ligados à promoção da lavoura nacional. Foram 140 anos marcados pela abolição da escravidão, pela instauração da República e uma série de transformações sociais. E, mesmo assim, a defesa da escravidão (ou a desculpa esfarrapada perante a constatação de trabalho análogo à escravidão) segue sendo um ponto de união entre ambos os centros.

O papel das autoridades e da sociedade civil

Ainda que precisemos conhecer e reconhecer as ações dos órgãos públicos que trabalham no resgate de pessoas em condições de escravidão, muito deve ser feito. A sociedade civil precisa estar atenta à todas as empresas que fazem uso do trabalho escravo e simplesmente deixar de consumir os seus produtos.

Cassação de licenças e multas volumosas também são ações esperadas dos governos estaduais e federal, que não podem relativizar situações como essa. Situações que, vale dizer, são criminosas e devem ser tratadas como tal (juridicamente falando).

Distribuição de renda e história da escravidão

Também é fundamental salientar a importância das políticas públicas de redistribuição de renda, aquelas que muitas vezes são chamadas de "assistencialistas". Num Brasil propositadamente desigual, essas políticas garantem o mínimo de dignidade a cidadãos, permitindo que eles e elas possam ter alguma margem de negociação de suas condições de trabalho.

Mas também precisamos falar e conhecer mais a história da escravidão brasileira, sobretudo a sua dimensão institucional. Entender por que ela perdurou por tanto tempo; compreender a quais interesses ela serviu; localizar quem lucrou com a escravização de milhares de homens e mulheres negros – para, assim, julgar e condenar quem continua lucrando com a escravidão.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Negros Trópicos

Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.

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