Nesta quinta-feira (25/05), comemora-se o Dia Mundial da África. Eu havia me preparado para escrever uma coluna que falasse sobre a necessidade, ao mesmo tempo urgente e ultrapassada, de conhecermos mais e melhor o continente africano e sua diversidade.
A ideia era lembrar um pouco da história desse dia 25 de Maio. Lembrar que, há exatos 60 anos, em 1963, foi criada na Etiópia a Organização de Unidade Africana (OUA), cujo objetivo era lutar coletivamente pela emancipação do continente, que, vale dizer, ainda estava sob o jugo da colonização europeia.
Mas minha intenção foi interrompida por três episódios recentes que geraram grande repercussão.
Piada racista e sem graça
"Negro não consegue achar emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim." Nesse primeiro caso, tivemos essa piada do humorista Leo Lins que, além de abertamente racista, é ruim e sem graça, sendo defendida com unhas e dentes por comediantes de plantão (brancos, é claro), que se consideram os defensores perpétuos de um humor sem censura.
Uma piada que gargalha do fato de a população negra ter dificuldades (reais) de encontrar emprego na atualidade e, ao mesmo tempo, ri da escravidão e tira um sarro do negro, que continua sendo apresentado como uma pessoa que não gosta nem nunca gostou de trabalhar.
O caso Vini Jr.
Tivemos também um estádio inteiro urrando e xingando um jogador negro e brasileiro de macaco, e uma liga espanhola de futebol que travestiu seu racismo de letargia, defendendo que possíveis ações relativas a esse episódio não estavam sob sua alçada. Afinal, qual o problema em chamar um jovem negro de macaco, não é mesmo?
Aqui no Brasil, inclusive, temos um senador democraticamente eleito que tentou contemporizar os ataques racistas a Vini Jr., dizendo que houve um excesso da mídia ao tratar o caso e que quem saiu exposto dessa situação toda foram os macacos.
Para nossa sorte, e por conta da luta antirracista e da grandiosidade de Vini Jr. (dentro e fora do campo), seu caso ganhou uma escala mundial e o importante apoio do Estado brasileiro, representado sobretudo na figura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de sua ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco.
Já teríamos aí "muito pano pra manga" na discussão sobre racismo no Brasil e no mundo, pensando inclusive sobre como um esporte de massa e que movimenta bilhões de dólares como o futebol poderia ser uma ferramenta importante na luta contra essa e outras formas de discriminação.
Brincar de chicotear gente preta
Então, eis que vem outra notícia-denúncia bombástica: a Google estava oferecendo um aplicativo no qual o usuário poderia simular ser um proprietário de escravizados. Isso mesmo, a empresa disponibilizava um jogo no qual o comprador poderia simular a escravidão negra que ordenou o Brasil entre os séculos 16 e 19, permitindo que se brincasse de comprar, vender e castigar pessoas escravizadas, pessoas que obviamente eram negras.
O jogo chegou a ser baixado por mais de mil pessoas, mas as denúncias de parlamentares e pesquisadores brasileiros fez com que a empresa não o disponibilizasse mais.
Como é que dentro de uma das maiores empresas do mundo, que desenvolve e hospeda uma série de serviços e produtos, não houve uma única pessoa que dissesse: "Veja bem, não me parece uma boa ideia hospedar um game que brinque com os horrores da escravidão"? Como é que, em meio a um debate intenso sobre racismo na arena pública mundial, uma empresa do tamanho da Google comprou e vendeu a ideia de que seria divertido brincar de chicotear gente preta?
Prazer em ser racista
Imagino que, em parte, a resposta esteja nessa ideia equivocada e racista de que a liberdade de expressão é sinônimo de vale-tudo. Vale xingar de macaco, vale fazer piada, vale se deleitar sendo senhor de escravizados. Vale tudo quando o que está em jogo é a subjugação e humilhação das pessoas negras.
Mas o que mais me chamou atenção nesses três episódios é que eles evidenciam que existe uma espécie de gozo em ser racista. Parece-me óbvio que, nos casos narrados (e eles não são os únicos), há um prazer deliberado, uma satisfação pessoal e coletiva na execução de práticas racistas.
Para muita gente, ser racista é um divertimento. E essas risadas são profundamente perigosas, porque escondem e dão leveza para um comportamento doentio, que segue naturalizando e ridicularizando as dores e violências destinadas a grupos sociais específicos.
Vivemos em um mundo doente, e quem segue pagando a conta são os negros e negras.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.