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"Querem mudar a narrativa sobre a ditadura"

Karina Gomes
22 de janeiro de 2020

Para familiares de vítimas da ditadura, mudanças na Comissão sobre Mortos e Desaparecidos desrespeitam legislação. Apontando necessidade de "corrigir irregularidades", órgão suspendeu emissão de atestados de óbito.

Arquivo: ato em memória de vítimas da ditadura militar
Arquivo: ato em memória de vítimas da ditadura militarFoto: Marina Estarque

Membro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) desde 2005, Diva Santana estava prestes a obter as certidões de óbito corrigidas da irmã, Dinaelza Santana Coqueiro, e do cunhado com a real razão do desaparecimento do casal em 1974: morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro. Mas alterações no regimento interno da comissão especial divulgadas na semana passada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos interromperam esse processo e o de outras famílias.

"Não fomos pegos de surpresa. Sabemos do que o novo governo é capaz. Na verdade, eles querem acabar com a comissão", opina Diva Santana, que é um dos sete membros da comissão criada em 1995 pela Lei 9.140 com o dever de reconhecer as mortes e desaparecimentos ocorridos entre 1961 e 1988, fazer esforços para localizar os corpos e indenizar os familiares das vítimas da ditadura militar.

Em entrevista exclusiva à DW Brasil, o presidente da CEMDP, Marco Vinícius Pereira de Carvalho, nomeado pelo presidente Jair Bolsonaro em julho passado, alegou que as mudanças servem para corrigir "impropriedades" nas atividades da comissão.

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Em notas, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disse que de esclarecimento as alterações no regimento interno foram feitas para "corrigir irregularidades cometidas pela antiga gestão", como a emissão de atestados de óbito, "o que não é uma atribuição do colegiado". As cerimônias para entrega de atestados de óbito também foram suspensas.

A presidência do órgão argumenta ainda que a comissão só pode atuar na busca de corpos para as famílias que tenham feito o pedido no prazo de 120 dias estabelecido a partir da entrada em vigor da lei que criou a comissão, em 1995. 

"Essa é uma interpretação restritiva e nunca foi sustentada antes. Esse é um entendimento inconstitucional e antijurídico. Todo pedido de reparação relacionado aos direitos humanos é imprescritível, segundo a jurisprudência internacional. Há um entendimento no Judiciário brasileiro de que esses prazos não valem. A nossa conduta na Comissão era a de derrubar essa limitação temporal", afirma a procuradora regional e ex-presidente da CEMDP Eugênia Gonzaga, que foi destituída do cargo por Bolsonaro em 2019.

Dinaelza Santana Coqueiro (à dir.), irmã de Diva Santana, membro da comissão especialFoto: Privat

Gonzaga lembra que o prazo de 120 dias para o reconhecimento de mortos e desaparecidos foi reaberto em 2004, contemplando também vítimas de manifestações, conflitos armados e suicídio relacionados ao regime militar. A criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) por lei em 2010 deixou clara a obrigação da União de continuar com os reconhecimentos dos mortos e desaparecidos da ditadura. A CNV identificou 434 mortos e desaparecidos.

"A CNV é uma comissão de Estado e um outro governo não pode arbitrariamente modificar as resoluções estabelecidas, que incluem a continuação das buscas e a retificação dos atestados de óbito. Além disso, a OEA [Organização dos Estados Americanos] condenou o Estado brasileiro em 2010 e determinou a localização de todos os desaparecidos na Guerrilha do Araguaia", aponta o advogado Marcelo Santa Cruz, irmão do opositor Fernando Santa Cruz, morto pelo regime militar em 1974 e pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz.

Gonzaga também contesta o argumento da presidência da comissão de que apenas médicos podem atestar a morte de uma pessoa, segundo a Lei de Registros Públicos. "A lei diz que não havendo médicos qualquer pessoa pode atestar a morte. Além disso, a CNV sempre recomenda a retificação dos atestados. O que fazíamos era cumprir a lei", diz. 

Esvaziamento

Para Santa Cruz, o novo regimento demonstra "um profundo desconhecimento da lei que criou a comissão". "Uma decisão administrativa não pode revogar uma lei", argumenta o advogado.

Fernando Santa Cruz foi morto pelo regime militar em 1974, segundo reconheceu a Comissão Especial sobre Morto e Desaparecidos PolíticosFoto: Privat

Gonzaga complementa que a justificativa do Ministério de Direitos Humanos evidencia uma falta de interpretação sistemática do ordenamento jurídico nacional e internacional.

"Se isso prevalecer, eles vão esvaziar completamente a comissão e vão declarar que encerrou a sua finalidade. É deplorável. As famílias não sabem o que aconteceu e não têm as respostas. O Brasil ainda não fez o seu papel de revelar os destinos desses corpos", afirma. "Temos que continuar até encontrar o último desaparecido."

Maria Amparo Almeida Araújo, membro do comitê de acompanhamento das ossadas do Grupo de Trabalho de Perus, em São Paulo, ainda aguarda a retificação do atestado de óbito do marido Luiz José da Cunha, torturado até a morte depois de ter levado tiros. "A intenção é que tudo o que é relacionado aos direitos humanos sofra um retrocesso", lamenta.

Santa Cruz diz que as comissões de familiares podem acionar a Procuradoria Federal da República e levar a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF). "As novas pessoas que assumiram a comissão querem criar uma nova narrativa. É como se a ditadura e as violações não tivessem ocorrido. E ainda desconhecem que houve uma Comissão Nacional da Verdade", afirma o advogado.

"Arbítrio e a falta de respeito"

Diva Santana, membro da CEMDP, diz que a mudança do regimento chegou a ser discutida, mas não foi submetida à votação na presença dos sete membros do colegiado. Tal afirmação foi contestada pelo presidente da comissão em entrevista à DW Brasil.

"Ficou claro o arbítrio e a falta de respeito. A comissão é o único instrumento legal de luta dos familiares para que se conte a história verdadeira. Como familiar, eu sou voto vencido junto com uma representante da sociedade civil", afirma Santana.

No ano passado, Bolsonaro substituiu quatro membros da comissão. O Ministério Público Federal (MPF) chegou a contestar as nomeações por serem de "pessoas com posições públicas contrárias aos objetivos" da comissão.

Os novos membros nomeados por Bolsonaro são alinhados com o governo. O presidente da comissão, Marco Vinícius Pereira, é advogado filiado ao PSL e assessor da ministra Damares Alves. Weslei Antônio Maretti é coronel reformado do Exército, e Vital Lima Santos é oficial do Exército. O deputado federal Filipe Barros é membro da Aliança pelo Brasil, partido recém-criado por Bolsonaro.

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