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Rússia justifica guerra na Ucrânia em livros escolares

Marina Konstantinova
12 de agosto de 2023

Novos livros de história desafiam os limites entre educação e propaganda ao retratar o conflito – ou "operação militar especial", nas palavras do Kremlin – a partir de uma outra perspectiva.

Vladimir Medinsky, funcionário do Kremlin e diretor da Sociedade Histórico-Militar Russa,  segura um livro escolar de história durante evento. Ele é um homem um pouco calvo, grisalho, branco, tem olhos claros e usa óculos de armação discreta e terno e gravata.
Vladimir Medinsky, funcionário do Kremlin e diretor da Sociedade Histórico-Militar Russa, durante evento de apresentação dos novos livros escolares de história.Foto: Sergey Bulkin/NEWS.ru/Globa Look Press/picture alliance

"Os capítulos que abarcam as décadas de 1970 a 2000 foram completamente revisados e reescritos. Uma nova seção foi adicionada, [cobrindo] de 2014 aos dias atuais, com um foco específico na 'operação militar especial'", anunciou Vladimir Medinsky, conselheiro do presidente russo Vladimir Putin, ao apresentar em uma coletiva de imprensa os novos livros de história que serão distribuídos nas escolas no início do ano letivo, em setembro.

"Operação militar especial" é o termo que o Kremlin usa para descrever a guerra que trava contra a Ucrânia.

Ex-ministro da Cultura, Medinsky é um dos autores por trás dos quatro novos livros didáticos; os outros são Anatoly Torkunov, do Instituto Estatal Moscovita para Relações Internacionais (MGIMO), e Aleksander Tchubaryan, diretor científico do Instituto de História Global da Academia Russa de Ciências.

A partir de 1º de setembro, todas as escolas russas terão livros de história padronizados para as turmas do 10º ao 11º ano – ou seja, adolescentes com idade entre 15 e 17 anos. Ao longo do ano seguinte, o mesmo colegiado de autores deve elaborar novos livros para as turmas do 5º ao 9º ano, que abrange a faixa etária dos 10 aos 15 anos de idade.

Livros apresentam conflito como saída ao "fim da civilização"

Na nova obra, o capítulo sobre história contemporânea foi ampliado para incluir desde os eventos na região do Donbass e os acordos de Minsk até a "operação militar especial".

Bombardeio em Kupiansk, na Ucrânia, destruiu em maio de 2023 uma creche; guerra é chamada pela Rússia de "operação militar especial".Foto: Sergey Bobok/AFP/Getty Images

Os autores sustentam que "a desestabilização da situação na Rússia é uma ideia fixa do Ocidente". Cada parágrafo compõe uma cadeia de eventos que justificaria primeiro a anexação de parte do território da Ucrânia em 2014, e depois a invasão em larga escala do país, em 2022.

Do fim da Iugoslávia nos anos 1990 – espécie de ensaio do Ocidente, segundo eles, para o "despedaçamento da Rússia" – à guerra na Geórgia em 2008 – aqui justificada diante de supostos ataques à Ossétia do Sul, região "conectada há séculos com a Rússia por uma amizade e história comum" –, os textos detalham a destruição de memoriais soviéticos no Leste Europeu e o "ressurgimento do nazismo" em países bálticos, seguido pelo nascimento do "nazismo ucraniano", uma "pesada violência nacional, linguística e cultural perpetrada contra a maioria por uma minoria agressiva".

Os autores argumentam ainda que o objetivo de qualquer cooperação entre países europeus, Estados Unidos e Ucrânia não teria por fim fortalecer o país governado por Volodimir Zelenski, mas sim enfraquecer a Rússia. A "atual junta ucraniana" teria chegado ao poder graças "à revolta sangrenta de 2014", e o desejo do país de juntar-se à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) seria a gota d'água para a assim chamada "operação militar especial". Neste ponto, há um apelo emocional em tom propagandístico: "Isso [a entrada da Ucrânia na Otan] seria provavelmente o fim da civilização. Não se deve permitir que isso aconteça."

O objetivo da "operação militar especial", escrevem os autores, é a "proteção do Donbass e uma garantia proativa à segurança da Rússia". A seção de história contemporânea é encerrada com informações sobre "fakes", "agentes estrangeiros" e os "heróis" do conflito.

O presidente russo, Vladimir Putin, acena para multidão durante cerimônia em 2022 em comemoração ao oitavo ano de anexação da Crimeia, território ucraniano.Foto: Ramil Sitdikov/Novosti Host Photo Agency/REUTERS

Apelo às emoções

Segundo Medinsky, o novo livro contém "significativamente menos números, datas e estatísticas" e mais "histórias sobre pessoas" e "eventos concretos". A linguagem, de fato, difere do estilo comumente utilizado por educadores – não é acadêmica, e sim apela às emoções e sentimentos dos estudantes. Fala-se menos em "Rússia" ou "russos", mais em "nós" e "nosso país". Não há fatos, e sim apelos: "Vocês já são crescidos, queridos estudantes!", "Não percam essa chance!", "A Rússia é hoje realmente um país de possibilidades".

Historiador russo-israelense e cientista político, Konstantin Pachaliuk era um dos especialistas envolvidos na elaboração dos livros didáticos de história antes da guerra na Ucrânia. "Escrevi um capítulo sobre a Primeira Guerra Mundial de um dos livros, que acabou sendo modificado e transformado em um panfleto patriota."

Historiadores já não se surpreendem com a guinada ideológica do conteúdo escolar na Rússia. "Nos livros de história, tudo gira constantemente em torno da ideologia. Reagimos com essa intensidade porque vemos que eles seguem a linha dos meios de propaganda – não estão sempre certos, mas também nunca estão completamente errados", avalia Sergei Tchernyskov, ex-diretor da Universidade de Novocollege, em Novosibirsk.

Os livros utilizados em escolas russas até então já abordavam a Crimeia, sanções e outros eventos da contemporaneidade. É o caso, por exemplo, de um livro para as turmas do 10º ao 11º ano que descreve a "reunificação da Crimeia com a Rússia" como reação à tomada de poder de "radicais nacionalistas" em Kiev. As sanções e o referendo constitucional de 2020 que assegurou a Vladimir Putin o controle sobre o país para além de 2024 mal são mencionados.

Historiadores consideram inadequado que a historiografia se ocupe de eventos atuais como esses, incluindo-os em livros escolares. "Não é algo comum, e é criticado por muitos historiadores. O presente não cabe à historiografia. É preciso que haja um distanciamento histórico. Talvez por isso o Estado queira misturar presente e passado, para que o presente pareça estável como a história", critica Pachaliuk. Para ele, o Kremlin, com isso, só está tentando borrar os limites que separam a história da propaganda.

ra