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História

"Rússia não lidou com o passado"

Sabine Peschel rk
7 de novembro de 2017

Historiadora Irina Shcherbakov diz que, cem anos após a Revolução Russa, ainda existe um abismo entre a realidade histórica do país e a opinião geral da população.

Estátua de Lênin em São Petersburgo: há vários monumentos a líderes soviéticos espalhados pelo país
Estátua de Lênin em São Petersburgo: há vários monumentos a líderes soviéticos espalhados pelo paísFoto: picture-alliance/dpa/M. Kainulainen

Uma das jornalistas, historiadoras e germanistas mais conhecidas da Rússia, Irina Shcherbakova ainda acredita numa Rússia "livre e democrática". Em 1988, ela fundou a primeira organização independente da sociedade civil da União Soviética, a Memorial, comprometida com pesquisas sobre a repressão soviética e o terror do regime stalinista, além da proteção de direitos humanos na atualidade.

Sua iniciativa é um esforço corajoso num país que, nos últimos quatro anos, promulgou várias leis que restringem severamente a liberdade de expressão.

Leia mais: Opinião: Silêncio nos cem anos da Revolução Russa

Leia mais:O que sobrou do comunismo?

Em agosto deste ano, Irina Shcherbakova recebeu a Medalha Goethe por suas tentativas de esclarecer o passado sombrio de seu país.

Shcherbakova (c.) recebeu a Medalha Goethe de 2017Foto: picture-alliance/dpa/C. Welz

As chances parecem estar contra ela: após a ocupação da Crimeia, em 2014, muitos críticos do presidente Vladimir Putin, como o diretor de cinema ucraniano Oleg Sentsov, foram para o exílio, enquanto jornalistas como Nikolai Andrushchenko, Dimitri Popkov e Anna Politkovskaya acabaram assassinados, provavelmente devido ao seu trabalho de denúncia.

Em entrevista à DW, ela diz que, cem anos após a Revolução de
Outubro, grande parte da opinião pública ainda "não lidou com o passado".

DW: Por que lidar com o aniversário da Revolução Russa é tão difícil para o Kremlin?

Irina Shcherbakova: Talvez o conceito de uma revolução tenha conotações negativas – a própria palavra é muito suspeita. Ninguém quer revoluções e levantes em vez de ordem e paz.

Por outro lado, somos lembrados da Revolução de Outubro todos os dias aqui na Rússia, graças aos vários monumentos e nomes de ruas que ainda carregam os seus símbolos. Lênin, o conspirador da revolução, ainda jaz em seu mausoléu na Praça Vermelha [em Moscou]. Isso é bastante controverso devido ao fato de a família do czar [Nicolau 2º] ter sido declarada mártir dessa revolução.

Agora, a União Soviética também está sendo apresentada de forma positiva, o que é outra contradição, já que a figura de [Josef] Stálin está ligada a ela. Acredito que o Kremlin busque a reconciliação e a unidade nacional, mas não há nada a se ganhar com a construção de monumentos ao antigo regime.

A senhora e o famoso historiador Karl Schlögel publicaram "Der Russland-Reflex" (O Reflexo Russo, em tradução livre) em 2015, durante o qual a senhora avalia o passado totalitário do país. Qual é a situação atual das análises históricas do stalinismo?

Animação retrata a Revolução Russa

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Stálin era um tabu sob a liderança de Leonid Brejnev (1964-1982). Nos anos 1970, os monumentos em homenagem a Stálin foram removidos, e suas imagens desapareceram. Ele voltou muito devagar – mas não da forma ampla de antes – apenas com a glorificação da Grande Guerra Patriótica [definição usada por Stálin em discurso no rádio para descrever a guerra dos soviéticos contra a Alemanha nazista, entre 1941 e 1945], e se tornou uma espécie de estrela nos últimos cinco anos. Pesquisas mostram que mais de 40% dos entrevistados o veem como uma figura histórica absolutamente positiva, portanto o público não lidou realmente com o passado.

Mas o público recebe a informação da TV e da propaganda, o que cria um abismo entre a realidade histórica e a opinião geral.

A eleição presidencial será realizada na Rússia no próximo ano, e é quase certo que Putin será reeleito. Por que ele ainda não anunciou a sua candidatura?

Acredito que isso acontecerá logo. Mas a eleição não vai oferecer uma escolha real. Qualquer candidato opositor não terá tempo na mídia tradicional, especialmente na televisão. O único opositor possível, Alexei Navalny, nem obteve permissão para concorrer à eleição.

Conhecida como a "Paris Hilton russa", a ex-estrela de reality shows e apresentadora de TV Ksenia Sobchak anunciou sua candidatura presidencial em outubro. Ela é apenas uma "sparring" para Putin ou a senhora a vê como uma política séria de oposição?

Não, eu não vejo. Ela é uma jornalista muito talentosa, mas ela não tem nenhum programa, instituição, movimento ou partido por trás dela.

Caricatura de Serguei Elkin sobre anúncio de candidatura presidencial de Ksenia Sobtchak

Por que ela pôde concorrer?

Ela é aceitável para Putin. Caso contrário, ela não teria obtido a permissão de concorrer. Eles acreditam que podem matar dois coelhos com uma só cajadada: a candidatura de uma mulher conhecida e glamorosa torna a corrida eleitoral mais interessante, ao mesmo tempo em que eles também podem usá-la como uma figura de proa democrática para mostrar que essas pessoas também podem concorrer à Presidência.

Navalny teria sido o único candidato independente se ele não tivesse sido preso, novamente, por 20 dias. Ele já tem estruturas que o apoiam.

Que papel Navalny ainda pode desempenhar como um político da oposição? E, se ele pudesse concorrer, a senhora votaria nele?

Ele não é necessariamente meu candidato dos sonhos. Ele não ganharia a eleição, mas, se tivesse permissão de concorrer, acredito que obteria até 18% dos votos em alguns distritos de Moscou.

Houve manifestações contra Putin em cerca de 80 cidades no dia do aniversário de 65 anos dele. Qual é a força da oposição? Eles eram todos apoiadores de Navalny?

Não é uma oposição como a conhecemos no Ocidente. Aquelas eram pessoas insatisfeitas que ousaram sair às ruas após um período relativamente longo devido à brutal dispersão de manifestações passadas. Mas foi incrível ver tantas pessoas jovens ali, porque eles quase não haviam se manifestado recentemente.

A televisão é muito importante para o Kremlin manter o poder. A internet é muito controlada?

A internet ainda é parcialmente livre, mas já há restrições. Bloggers são perseguidos e até pessoas que dão "like" em conteúdos que o governo julga politicamente perigoso estão sendo penalizadas e perseguidas. Houve muitos casos desses recentemente. A intenção é controlar a internet da mesma forma que a China faz.

O círculo da mídia independente – seja a mídia impressa, a TV ou o rádio – está ficando menor. Há apenas um canal de TV online livre. Todo o resto é mais ou menos controlado pelo governo.

Manifestação anti-Putin no início de outubro em São PetersburgoFoto: picture-alliance/dpa/TASS/P. Kovalev

Uma troca de opiniões pública e aberta ainda é possível?

Depende de onde e quando, já que em geral é muito difícil obter permissão para organizar manifestações. As leis estão ficando mais e mais agressivas, e reuniões de pessoas, especialmente as que juntam apoiadores de [Alexei] Navalny, são constantemente banidas ou transferidas para as periferias das cidades. Atualmente, existe uma disputa sobre o Youtube, onde Navalny tem milhões de seguidores.

Populismo, nacionalismo, militarização – isso tudo faz parte da ressurreição do Grande Império Russo ou de algum tipo de 'estabelecimento de uma nação' após a desintegração da União Soviética?

Nem uma coisa, nem outra. O que estão tentando transmitir às pessoas é que a Rússia é um Estado forte. Eles dizem que os inimigos e espiões estão em toda parte e que temos que proteger nossas fronteiras porque eles estão tentando atravessá-las.

Mas programas nacionalistas e patrióticos nunca levaram a nada de bom na Rússia. Na minha opinião, essa inclinação ao tradicionalismo é um substituto para a não-modernização do país. Quase não produzimos nada além de armas. Não se desenvolve tecnologia aqui. Mas são precisos cientistas e um mercado livre para mudar isso, e não slogans patrióticos.

Eu trabalho com muitas pessoas que pensam da mesma maneira, então eu ainda espero ver uma Rússia livre e democrática. Mas a situação é muito séria. Se o nacionalismo, o fundamentalismo, a militarização, a secessão e a Guerra Fria não forem rejeitados de forma consistente, isso terá consequências muito graves para a Rússia e também para toda a Europa.

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