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Reabertura deve gerar nova explosão de covid-19 no Brasil

5 de junho de 2020

Estados começam a afrouxar quarentena mesmo sem ter superado pico de infecções e mortes. Medidas vão na contramão de outros países duramente afetados pela covid-19. Para especialistas, é a receita para uma tragédia.

Brasilien Coronavirus in Breves
Foto: AFP/T. Sarraf

O Brasil se tornou na quinta-feira (04/06) o terceiro no mundo em vítimas fatais totais, ultrapassando a Itália, com 34.021 mortes. A marca foi superada cem dias após a detecção do primeiro caso de coronavírus no país.

Também houve renovação do recorde diário de óbitos: 1.479 vidas a menos em 24 horas – uma por minuto. Os números, no entanto, são provavelmente bem mais altos, por causa da subnotificação e falta de capacidade para realizar mais testes.

Mesmo com esse crescimento dos casos e de mortes, sem que o pico tenha sido superado e com a maior parte dos estados com níveis de contágio elevados, alguns governadores e prefeitos começaram a relaxar medidas de restrição de isolamento social.

Segundo pesquisadores que acompanham a evolução da pandemia ouvidos pela DW Brasil, o cenário para os próximos dias tende a ser trágico.

Uma estimativa do grupo de monitoramento da pandemia Covid-19 Brasil, prevê que, contados dez dias após o começo do alívio das restrições, o número de infectados cresça 150% e o de vítimas fatais exploda.

"Me baseio no caso de Blumenau e no que aconteceu em menos de uma semana em Milão, onde estavam em lockdown, abriram, e o número de casos aumentou em 150%", diz Domingos Alves, do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ligada à USP.

O grupo Covid-19 Brasil alerta que uma queda dos casos por quatro ou cinco dias não é o suficiente para afirmar que é seguro afrouxar as medidas de distanciamento.

Em nota técnica emitida nesta semana, diversos grupos de cientistas brasileiros reiteraram as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e o que tem mostrado a experiência internacional: para sair da quarentena, é preciso observar diversos critérios, entre eles, uma queda sustentada do número de casos e óbitos, ou seja, que se mantenha por duas ou três semanas. Esse foi o caminho seguido pela Espanha, Alemanha e França.

Segundo os cientistas, todo o cenário é diferente no Brasil. Nenhum outro país, por exemplo, tinha uma aceleração do número de infectados a partir do quinquagésimo quarto dia de sua pandemia. Nesse ponto, todos já viam um enfraquecimento do avanço da covid-19.

O professor titular de epidemiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Roberto Medronho lembra que, dada a heterogeneidade do país, é possível considerar que em alguns lugares o pico de infecções já tenha sido ultrapassado.

"Mas a doença está migrando pelo território e atingindo outros municípios, então isso faz com que a gente ainda tenha um número muito alto de casos e mortes. Somos o epicentro no mundo. Num momento desses, em que a maioria está na fase ascendente da curva, é no mínimo temerário abrir", avalia. Na visão dele, devia ser feito o contrário: um controle mais severo da circulação de pessoas.

Novas covas abertas em cemitério de São PauloFoto: picture-alliance/ZUMAPRESS.com/P. Lopes

Mesmo em países que tomaram todos os cuidados para a reabertura, afirma Medronho, houve recrudescimento da covid em algumas localidades. "Eu temo que no Brasil ocorra um recrudescimento. Em alguns lugares, inclusive, está começando a se elevar agora", disse.

Uma das exceções, segundo pesquisadores da USP, seria o Ceará, que parecia estar apontando para uma superação do pico, e poderia, mantidos o isolamento e níveis decrescentes de novas infecções, reabrir gradativamente em poucas semanas.

No entanto, o governo cearense optou por já relaxar a quarentena nesta semana. "A meu ver, ainda deveríamos ter aguardado mais", diz Alberto Novaes, professor e membro do comitê de enfrentamento à covid-19 da faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC),

Segundo Novaes, apesar de o número R do Ceará estar perto de 1, isso não é representativo do estado como um todo, já que há múltiplas realidades e uma desigualdade acentuada, inclusive dentro de um mesmo município.

O número efetivo de reprodução R designa o potencial de propagação de um vírus dentro de determinadas condições. Se ele é superior a 1, cada paciente transmite a doença a pelo menos mais uma pessoa, e o vírus se dissemina. Se é menor do que 1, cada vez menos indivíduos se infectam e o número dos contágios retrocede. 

Enquanto algumas cidades do Ceará já veem uma redução, outras estão na aceleração da curva, e há um movimento de interiorização da doença.

Nesta semana, o Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a COVID-19 afirmou que o pico da doença ainda não foi atingido em nenhum estado da região. A recomendação do comitê é que as medidas de isolamento social sejam mantidas.

No Norte, a situação é ainda pior. A região tem os três piores índices de infecções por 100 mil habitantes do país: Amapá, Amazonas e Acre. Mais populoso dos três, o Amazonas começou o afrouxamento da quarentena nesta semana.

Reabertura em SP é questionada

Primeiro estado a ter casos de coronavírus no Brasil, São Paulo começou sua reabertura na última segunda-feira, após uma virada na retórica do governo estadual. Em sua apresentação do plano de reabertura, João Doria argumentou que "medidas de isolamento social achataram a curva de contágio em São Paulo em relação a outros países e ao Brasil". Uma semana antes, ele alertava para a possibilidade de um lockdown em todo o estado, diante do crescimento no número de novos casos.

Os argumentos apresentados por Doria, no entanto, não encontram eco entre muitos cientistas, que veem uma falta de embasamento no que foi apresentado ao público. Segundo os pesquisadores que assinam a nota técnica crítica à reabertura, a curva de São Paulo, quando posta em escala logarítmica, mostra o contrário do que poderia ser um achatamento.

Governador Joao Doria iniciou abertura após cogitar lockdownFoto: picture-alliance/Zuma/P. Lopes

Além disso, outro razão apresentada, de que São Paulo agora contribui proporcionalmente menos para o total de casos e mortes no país, é considerada falaciosa, já que o estado foi o primeiro a ter casos e, por isso, está em momento diferente da pandemia em relação a outras unidades da federação, o que não significa necessariamente que tenha superado o pior.

A flexibilização paulista também é criticada por juristas. Nessa quinta-feira, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e o Sindicato dos Advogados de São Paulo (SASP) protocolaram uma ação pedindo a suspensão das medidas de isolamento social até que seja comprovada a queda nos números.

Para as entidades, o Estado atua de forma contrária ao que os estudos recomendam, atendendo a apenas dois de seis critérios recomendados pela OMS para a reabertura: capacidade de detectar e tratar novos casos e adotar medidas de prevenção em locais de trabalho.

Mas nem todos creem que o plano paulista seja má ideia.O presidente da Academia Nacional de Medicina, Rubens Belfort Jr., diz apoiar a flexibilização em São Paulo: "Se fosse assim [esperar os critérios que foram observados em outros países], o Brasil ia ficar fechado por um ano. Porém, a realidade é que temos que trocar o pneu com o carro andando", afirma, ao lembrar que o país passa por tensões sociais e econômicas.

"A minha avaliação é que as aberturas têm que ser determinadas pelo gestor regional, quem tem que estabelecer é o governo de São Paulo, não a OMS. O governo vai ouvir a OMS, vai ouvir quem ele precisa, e tem um comitê de crise altamente competente", diz Belfort Jr.

No Rio, Crivella reabre à revelia de ordem judicial

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, anunciou na segunda-feira a reabertura da cidade. Com a mais alta taxa de letalidade entre as capitais, e com ocupação dos leitos em torno de 80%, passaram a ser permitidas atividades em templos religiosos e reabertura de parte do comércio.

"O Rio ainda não está em queda (do número de casos e mortes). É um pouco temerário que se abra. Hoje (4/6) fiquei sabendo que houve abertura dos camelódromos, o que acaba levando a uma concentração de muita gente", diz o presidente da comissão estadual de ciência do Rio de Janeiro no combate à covid -19 e presidente da Faperj, Jerson Lima Silva."Eu acho que deveria pegar esse plano e dilatar o máximo possível".

A medida está em desacordo com a orientação estadual, que mantém a quarenta, com perspectiva de começar a relaxar restrições a partir do dia 15 de junho. Com isso, Crivella descumpriu também, segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), uma decisão da Justiça, que determinava que a administração municipal não contrariasse as legislações federal e estadual em temas relativos à covid-19.

Até ontem, o estado do Rio contabilizava mais de 6,3 mil mortes por covid-19 – mais que a China, com 4,5 mil – e 60,9 mil casos. O número de reprodução R dos Sars-Cov-2 está em torno de 2 no estado.

"Tendo em vista que o Estado está aparentemente pouco preocupado com a nossa saúde, acho que agora cabe a cada um de nós tomar a melhor decisão. Quem puder ficar em casa, fique. Quem tiver que sair, não deixe de usar a máscara, não deixe de higienizar as mãos", recomenda Medronho.

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