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Rebeca Andrade traz de volta orgulho do Brasil

Nina Lemos
Nina Lemos
6 de agosto de 2024

Ver uma menina negra de origem pobre mostrar essa excelência e ser reverenciada por suas rivais é emocionante. E precisa servir para balançar as estruturas do Brasil, onde existem tantas crianças como Rebeca.

Rebeca Andrade conquistou Paris em 2024Foto: Marijan Murat/dpa/picture alliance

"Obrigado, Rebeca Andrade", disse o narrador da TV alemã ZDF assim mesmo, em português. Em seguida completou, agora em alemão: "Foi fantástico! Foi maravilhoso! Todo o público está encantado!"

O comentário, repito, não era do Galvão Bueno, mas de um comentarista em geral menos empolgado de uma TV da Alemanha na segunda-feira (05/08), pouco depois de Rebeca fazer sua apresentação no solo que a levou a conquistar sua primeira medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris, desbancando Simone Biles, considerada a maior ginasta de todos os tempos.

Com o resultado no solo, Rebeca se tornou a atleta brasileira a ganhar mais medalhas olímpicas na história: quatro nos Jogos Olímpicos de Paris e duas conquistadas em Tóquio em 2020. Ela ultrapassou os antigos recordistas, os velejadores Robert Scheidt e Torben Grael.

Estamos todos felizes como se fôssemos da família dela. Confesso: há tempos eu não sentia tanto orgulho do Brasil. Convenhamos, não é fácil se orgulhar de um país tão violento e desigual.

Mas podemos, e devemos, nos orgulhar de nossas atletas. E das mulheres. Após a vitória, um momento virou o mais icônico dos jogos olímpicos e roda o mundo.

Nele, Rebeca é reverenciada por suas rivais, a maior atleta de ginástica do mundo, Simone Biles, e a ginasta americana que ganhou a medalha de bronze, Jordan Chiles. As duas se ajoelharam e estenderam as mãos para Rebeca como se ela fosse uma rainha. E ela é.

As três formaram pela primeira vez um pódio da ginástica olímpica só de mulheres negras. E essa imagem diz muita coisa: o futuro é delas. E ele é menos competitivo e tem união entre as mulheres. Não tem como não se emocionar com essa imagem.

Mas ainda temos muitos outros motivos para nos alegrar. Um deles é o fato de admiramos e reconhecemos o "corre" de meninas como Rebeca e Bia Souza, medalhista de ouro no judô.

Apesar de todas as desigualdades brasileiras

Rebeca, a ginasta campeã olímpica brasileira admirada no mundo todo (até por sua rival Simone Biles, que não cansa de exaltá-la) tinha tudo para não estar naquele pódio. E, claro, não falo da falta de talento, mas de todas as desigualdades brasileiras: social, racial e econômica. Rebeca, filha de uma empregada doméstica que é mãe solo de oito filhos, ocupava o local mais baixo de todas essas desigualdades.

Ver uma menina com essa história, talentosa e carismática como ela, mostrar essa excelência e ocupar o topo do esporte mundial é emocionante. E devia servir para balançar as estruturas do Brasil, onde existem tantas crianças com a história de Rebeca e tão pouca oportunidade para elas.

Mais uma prova da desigualdade e da falta de investimentos públicos no esporte, que era quase inexistente até meados dos anos 2000: quem tem mais de 40 anos cresceu vendo o Brasil ganhar medalhas principalmente em esportes de elite, como a vela, por exemplo. Ver garotas do povo ganhando em atletismo tem outro gosto.

Segundo especialistas, a situação começou a mudar para melhor com a implementação da Bolsa Atleta, que é um investimento público que garante uma remuneração mensal para atletas brasileiros e foi criado em 2004. Além disso, existem também investimentos municipais, estaduais e federais. Mesmo assim, os atletas dizem que o investimento ainda é pouco.

Medalhas para mulheres pretas

Rebeca não é a única. Essa é a Olimpíada das mulheres. Das 13 medalhas conquistadas até hoje, nove foram ganhas por mulheres.  

E até agora, as únicas a conquistarem medalhas de ouro nos jogos de Paris foram duas mulheres pretas: Rebeca Andrade e Bia Souza, campeã olímpica do judô e a primeira atleta brasileira a ganhar medalha de ouro em Paris.

O orgulho de ser brasileiro, que andava sumido (e temos muitas razões para isso) voltou com tudo. Nos emocionamos com a bandeira, que até pouco tempo tinha virado um símbolo de extremismo político e nacionalismo, e até com o hino. E, como diz a música, "a lágrima é verdadeira".

Como não nos emocionar com o hino, vendo garotas como Rebeca e Bia no pódio?

Rebeca e sua família enfrentaram a pobreza e o abandono. Bia, a gordofobia e o racismo. As duas são frutos de políticas públicas no esporte: se elas não existissem, as duas nunca estariam onde estão. Bia começou numa ONG. Rebeca, num projeto da Secretaria de Esportes de Guarulhos, quando só tinha quatro anos.

"Deu certo, mãe, eu consegui!"

Rebeca e Bia, assim como outras atletas que brilham nas Olimpíadas, nos enchem de orgulho não só porque ganham medalhas e exibem a bandeira do Brasil, mas por suas trajetórias incríveis de superação e por terem saído de ambientes de pobreza onde os jovens muitas vezes não podem nem sonhar. Que bom que elas puderam. Dito isso, como não se emocionar com o vídeo que mostra a conversa de Bia com sua mãe, logo depois de a atleta conseguir o ouro?

"Deu certo, mãe, eu consegui, eu consegui, eu consegui! Foi pela vó, eu amo vocês mais que tudo, eu amo vocês."

A vitória não é só das famílias de Rebeca e Bia, mas de todos. Quantas meninas nesse momento sonham em ser como elas? Que elas sirvam de inspiração para muitas meninas, Brasil afora. "Não desista, gente. É difícil, mas a gente consegue", disse Bia depois de ganhar, aos prantos.

Obviamente são poucas as pessoas que têm o talento extraordinário e a disciplina de medalhistas olímpicas. Mas devem existir muitos meninos e meninas talentosos no Brasil para além do futebol. Que recebam as chances que merecem. De uma coisa ninguém pode duvidar: da falta de resultados. Obrigada, meninas.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

 

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000. Desde 2015, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão em Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada.