Para especialistas ouvidas pela DW Brasil, é possível que a onda de motins ocorrida em presídios masculinos contamine prisões de mulheres. Contudo, ela não seria tão violenta, nem motivada pela rivalidade de facções.
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A onda de rebeliões ocorrida nas primeiras semanas de janeiro, o que resultou na morte brutal de dezenas de detentos em presídios masculinos do Amazonas, Rio Grande do Norte e Roraima, pode chegar às unidades femininas, ainda que um motim em uma prisão de mulheres não viesse a ser tão violento, avaliam especialistas consultadas pela DW.
Não existem dados oficiais sobre facções exclusivamente de mulheres nas penitenciárias brasileiras, embora se tenha notícias de que presas já façam parte destes grupos. Segundo a Irmã Petra Silvia Pfaller, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária para a questão da mulher presa, a violência entre as facções é um problema de menor importância nos presídios femininos. Segundo ela, o que pode motivar uma revolta das presas é a tentativa de chamar a atenção para a "situação degradante" em que vivem. "O perigo maior a que as presas estão sendo expostas são as mazelas estruturais do encarceramento em massa. As facções são produtos do caos carcerário criado pelo Estado."
O Brasil reúne a quinta população carcerária feminina do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China, Rússia e Tailândia, segundo relatório recente do Institute for Criminal Policy Research (ICPR), da Universidade de Londres. Apesar de as mulheres representem hoje apenas 6,4% do total de detentos, o encarceramento feminino foi o que cresceu de forma mais acelerada nos últimos anos. De 2000 a 2014, o número de mulheres presas subiu 567%, de acordo com o Infopen. No mesmo período, o número de presos homens cresceu 220%. Em geral, as presas brasileiras são negras (68%), jovens até 29 anos (60%) e apenas 11% concluíram o Ensino Médio.
Violência estrutural
Embora a superlotação seja mais aguda e explosiva nos presídios masculinos, a situação das unidades femininas também é grave e desrespeita direitos básicos da mulher encarcerada, previstos pela Lei de Execução Penal de 1984. Segundo a Pastoral Carcerária, o cenário de grande parte das prisões femininas brasileiras é marcado pela falta de colchões, racionamento de água, precariedade de alimentos, remédios e produtos de higiene. Há relatos de que prisões de São Paulo (o estado mais rico do país) não oferecem sequer absorventes íntimos às detentas, que têm de substituí-lo por miolo de pão amassado.
Além disso, a maioria das mulheres não são encarceradas em presídios femininos, mas em alas reservadas dentro de unidades masculinas. Lugares que, segundo especialistas ouvidas pela DW, não atendem às necessidades particulares das presas. Apenas 7% das penitenciárias no Brasil são exclusivamente femininas, de acordo com levantamento do Infopen.
"Essa separação (de unidades femininas e masculinas) é fundamental para garantir a segurança física e psicológica da mulher presa", afirma a Irmã Petra Silvia Pfaller. Segundo ela, além de não oferecer instalações adequadas para as necessidades particulares das presas, prisões mistas são ambientes perigosos para mulheres, principalmente em casos de rebeliões violentas por parte dos presos — como as que ocorreram nas últimas semanas. Em junho de 2015 houve um motim no Presídio de Governador Valadares, no leste de Minas Gerais, que funciona como uma unidade mista. De acordo com a Pastoral Carcerária, várias detentas afirmaram que foram estupradas por outros presos que ficaram soltos dentro do presídio durante a rebelião.
A situação costuma ser ainda pior para grávidas e mães de filhos em fase de amamentação. Apenas 3% das unidades femininas conta com cela para gestantes e nenhuma oferece creche para os filhos de presidiárias, segundo os números do Infopen. "As consequências do encarceramento são muito mais graves para a mulher", avalia a Irmã Petra Silvia Pfaller. "É uma violência estrutural. O aprisionamento feminino reforça e revela a vulnerabilidade à qual uma sociedade patriarcal submete milhares de mulheres, esquecidas num sistema prisional que foi feito por homens e para homens."
O crescimento vertiginoso da população encarcerada está relacionado com a lei de número 11.343, aprovada em agosto de 2006, durante o governo Lula. A legislação endurece a punição para crimes relacionados com o comércio de substâncias ilícitas, com penas que chegam a 15 anos de reclusão. O texto define tráfico de drogas de forma pouco clara, o que pode abrir margem para diversas interpretações. "Ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar e fornecer drogas, ainda que gratuitamente", segundo o texto, configuram como crime.
Ainda de acordo com o Infopen, cerca de 68% do total de presidiárias estão encarceradas pelo envolvimento com substâncias ilícitas. "Geralmente, elas ocupam posições bem periféricas dentro do tráfico de drogas. É evidente que elas não exercem papéis centrais na articulação desses grupos (facções)", afirma Julita Lemgruber, ex-diretora do sistema penitenciário do Rio de Janeiro. "Mas com o crescimento do número de mulheres presas por tráfico de drogas, e esses conflitos (em decorrência da rivalidade entre facções) se multiplicando nas unidades masculinas, certamente veremos situações complicadas nas prisões femininas."
Na leitura da socióloga, que coordena o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, a reprodução da carnificina observada recentemente nos motins masculinos seria pouco provável num ambiente carcerário de mulheres. "É muito difícil que se tenha, numa prisão feminina, níveis de violência [tão altos] como vemos nas masculinas. Historicamente, isso não faz parte do universo da mulher encarcerada", diz. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), metade das 566 mortes registradas nas unidades prisionais no primeiro semestre de 2014 foram assassinatos. Do total de mortos, apenas 3% eram mulheres. "A mulher sofre muito mais a violência do que é violenta", afirma a Irmã Petra Silvia Pfaller.
Regras de Bangcoc
Em 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas, estabeleceu as "Regras de Bangcoc", uma série de políticas para reduzir o encarceramento em massa de mulheres e melhorar as condições das presas nas cadeias. O documento orienta que a Justiça dos países membros priorize penas alternativas a mulheres, no lugar da prisão – principalmente no caso de mulheres grávidas e mães de crianças pequenas. "A privação de liberdade deveria ser o último recurso para punir a mulher, e não ser generalizada, como tem feito o Judiciário brasileiro", critica a socióloga Julita Lemgruber.
Cronologia da crise nos presídios
Ano de 2017 começa com crise inesperada para o governo Temer: na primeira quinzena de janeiro, 120 presos são barbaramente assassinados dentro de presídios do norte do país, com ação de facções criminosas.
Foto: Reuters/J. Goncalves
Eles se matam, e a polícia não age
1º de janeiro: presos iniciam uma rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus. A polícia decide não entrar para conter o massacre. Autoridades locais alegam que tomaram tal decisão para evitar uma tragédia semelhante à do Carandiru, quando 111 presos morreram num motim com a ação policial, em São Paulo, em 1992.
Foto: picture-alliance/Zumapress/A Critica
56 mortos, corpos decapitados e esquartejados
2 de janeiro: a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas divulga o número de mortos: 56 presos assassinados, boa parte deles decapitada e esquartejada. Foram mais de 17 horas de massacre. As autoridades de Manaus atribuem a tragédia à disputa entre as facções criminosas Primeiro Comando da Capital (PCC) e Família do Norte (FDN). Em desespero, famílias aguardam identificação de corpos.
Foto: Reuters/M. Dantas
"Tudo sob controle"
3 de janeiro: o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, visita o Complexo Anísio Jobim, onde aconteceu a rebelião de Manaus, e diz que situação está "sob controle". Moraes afirma que governo não corrobora a tese de confronto entre facções. Uma rebelião como a de Manaus, diz, é provocada por um somatório de fatos que ainda precisariam ser analisados pelo governo.
Foto: Isaac Amorim/Ministerio da Justica e Cidadania
"Ninguém ali era santo"
4 de janeiro: o governador do Amazonas, José Melo de Oliveira (Pros), faz uma declaração chocante sobre a matança no presídio: "Não tinha nenhum santo. Eram estupradores, matadores (...) e pessoas ligadas a outra facção, que é minoria aqui no Estado do Amazonas". O governo estadual decide, só depois da tragédia, retirar os presos ameaçados de morte e transferi-los para outro local.
Foto: Divulgacao/SECOM/H. Pereira
Protagonismo do Supremo
5 de janeiro: a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, assume um papel de protagonismo na crise. Um dia após a tragédia, ela decide viajar a Manaus e afirma que a situação é explosiva. No Amazonas, faz reuniões com juízes e desembargadores. Por orientação dela, o Conselho Nacional de Justiça monta uma força-tarefa para supervisionar as medidas do estado do Amazonas sobre a crise.
Foto: Divulgacao/SCO/STF
"Mais do mesmo"
5 de fevereiro: o governo anuncia o Plano Nacional de Segurança em resposta à crise. O ministro da Justiça apresenta, entre as medidas, a construção de cinco presídios de segurança máxima, sem detalhar custos e prazos. Especialistas ouvidos pela DW dizem que programa reedita propostas dos governos Lula e Dilma, é genérico e não dá nova perspectiva para o fim do aprisionamento em massa.
Foto: Isaac Amorim/Ministerio da Justiça e Cidadania
O silêncio e o acidente
5 de janeiro: o presidente Michel Temer faz o primeiro comentário sobre as mortes, referindo-se aos massacres como "acidente pavoroso". "Eu quero me solidarizar com as famílias que tiveram seus presos vitimados naquele acidente pavoroso que ocorreu no presídio de Manaus." O presidente, que já tinha sido criticado por seu silêncio e omissão, foi reprovado pelo uso da palavra acidente.
Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Em Roraima, outra barbárie
6 de janeiro: na madrugada, outro massacre é iniciado, desta vez na penitenciária Agrícola Monte Cristo, em Roraima. Mais 33 presos são mortos. O governo classifica as mortes de barbárie e diz não ter indícios claros se o massacre tem relações com vingança de facção criminosa.
Foto: Getty Images/AFP/V. Almeida
Baixa no governo
6 de janeiro: a crise penitenciária produz a primeira baixa no governo. O secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio, é demitido após declarações polêmicas publicadas no "Globo". "Tinha que fazer uma chacina por semana", teria dito. Ele negou ter feito a afirmação. À "Folha de S. Paulo", disse: "Fico triste porque não estão dando tanta importância para as pessoas de bem que morrem todo dia".
Foto: Divulgacao/JPMDB
A matança continua
8 de janeiro: mais quatro presos são mortos em novo motim no Amazonas. A rebelião, desta vez, é na Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, no centro de Manaus. Três detentos são decapitados, e um foi morto por asfixia.
Foto: Agência Brasil/Marcelo Camargo
Reforço tardio
9 de janeiro: o governo federal autoriza envio de cem homens da Força Nacional de Segurança a Manaus e outros cem para Roraima. Ministro da Justiça se compromete a atender pedidos de sete estados das regiões Norte e Centro-oeste para auxiliar no policiamento e segurança, autorizando transferência de presos para penitenciárias federais e liberando recursos.
Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Após a tragédia, a tentativa de controle
10 de janeiro: a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e a PM do Amazonas fazem revistas nas unidades prisionais da capital. A ação dos policiais foi iniciada no dia 5. Na ala dos presos que cumprem regime semiaberto do Complexo Penitenciário Anísio Jobim são encontrados pen-drives, walkie-talkies, cabos telefônicos, celulares, alicates, facas, martelos e outras ferramentas.
Foto: Bruno Zanardo/Secom
Mais um capítulo da crise: 26 mortos no RN
15 de janeiro: um novo motim ocorre no presídio de Alcaçuz, na cidade de Nísia Floresta, região metropolitana de Natal. O governo do estado confirmou a morte de 26 detentos. Assim como em outras rebeliões do Norte, os corpos estavam desfigurados. A perícia levará 30 dias para fazer as identificações. Após a rebelião, presos foram revistados nus. Houve auxílio da Força Nacional de Segurança.
Foto: picture-alliance/dpa/F. Marcone
Confusão sem fim em Alcaçuz
16 de janeiro: Um dia após o motim que terminou com ao menos 26 mortos, a penitenciária de Alcaçuz (RN) volta a ser palco de tumultos. Em dia de "clima tenso”, um grupo de detentos voltou a ocupar os telhados dos pavilhões e proferir ameaças contra facções rivais de dentro do presídio. Agentes da PM, do Bope e do GOE não conseguiram controlar a situação. A Força Nacional teve de ser acionada.
Foto: Reuters
Onda de rebeliões chega a Minas Gerais
17 de janeiro: Cerca de 1.200 detentos do presídio Antônio Dutra Ladeira, em Ribeirão das Neves (MG), anunciam um motim para reivindicar a saída do diretor da prisão e a melhora no tratamento de familiares e presos. Em vídeos que circulam pela internet, eles ameaçam uma carnificina caso não sejam ouvidos. "Vai morrer muita gente, o massacre vai começar", diz um dos presos encapuzado de vermelho.
Foto: Quelle: Youtube/Portal O TEMPO
Forças Armadas entram nos presídios
17 de janeiro: Governo autoriza que as Forças Armadas passem a inspecionar materiais proibidos, como armas e drogas, dentro dos presídios estaduais. A segurança interna continua, porém, sob responsabilidade de agentes penitenciários e policiais. Segundo a presidência, a "operação visa restaurar a normalidade e os padrões básicos de segurança nos estabelecimentos carcerários brasileiros."
Foto: picture-alliance/AP Photo/E. Peres
Agentes penitenciários protestam por trabalho
17 de janeiro: Em Brasília, agentes penitenciários reivindicam a contratação de profissionais aprovados em concursos públicos e melhores condições de trabalho. Segundo a Federação Brasileira dos Servidores Penitenciários, o Brasil teria de aumentar em 30 vezes o número de agentes penitenciários para atender à recomendação nacional de um agente para cada cinco presos.
Foto: Agência Brasil/M. Casal Jr.
Caos chega às ruas de Natal
18 de janeiro: Na capital Natal, ao menos 14 ônibus, dois micro-ônibus, um carro do governo, cinco viaturas da polícia, duas delegacias e um prédio de uma secretaria de Saúde foram alvos de atos criminosos. O vandalismo ocorreu depois de 220 detentos terem sido transferidos do presídio de Alcaçuz (RN). A polícia também registrou quebradeiras nas cidades de Macau, Parnamirim e Caicó.
Foto: Reuters/J. Goncalves
Proteção às fronteiras
19 de janeiro: O ministro da Defesa, Raul Jungmann, visita o Sistema Integrado de Sensoriamento em Dourados (MS), próximo à fronteira com o Paraguai. O governo investirá 450 milhões de reais no Sisfron, que usará radares e câmeras para monitorar os mais de 16 mil km de fronteiras contra o narcotráfico. O Brasil é hoje o principal ponto de saída de cocaína produzida na América do Sul para a Europa.
Foto: Agência Brasil/V. Campanato
Campo de guerra em Alcaçuz
19 de janeiro: A confusão no presídio de Alcaçuz, em Nísia Floresta (RN), pulou os muros da penitenciária e chegou às ruas de Natal e cidades próximas, que foram palco de ao menos 26 veículos incendiados e diversos prédios apedrejados. Militares foram acionados para tomar o controle da segurança nas cidades.