Antiga basílica transformada em museu em 1934 reabre ao culto muçulmano. Para Orhan Pamuk, um dos romancistas mais prestigiados da Turquia e Nobel da Literatura, episódio desfaz imagem secular do país.
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Nesta sexta-feira (24/07), a Basílica de Santa Sofia (Hagia Sophia) reabriu para orações muçulmanas, pela primeira vez em 86 anos. Trata-se da primeira cerimônia realizada no monumento mais visitado de Istambul desde que o local foi convertido de museu em mesquita, através de um controverso decreto presidencial.
Apesar das atuais medidas de distanciamento social ditadas pela pandemia de coronavírus, o evento atraiu centenas de fiéis do lado de fora da antiga igreja bizantina do século 6º.
Em 10 de julho, um decreto do presidente Recep Tayyip Erdogan o edifício ao culto muçulmano, despertando críticas ao redor do mundo. Uma destas vozes dissidentes é a de Orhan Pamuk, um dos romancistas mais prestigiados da Turquia e Prêmio Nobel de Literatura de 2006.
Ele lamenta o destino da famosa obra arquitetônica, Patrimônio Mundial da Unesco desde 1985, considerando-o um ato populista que desfaz a imagem laica de seu país construída por Kemal Atatürk, fundador da moderna república turca. Em Istambul, Pamuk concedeu uma entrevista exclusiva para a DW.
DW: A grande Hagia Sophia, aqui em Istambul, um museu nos últimos 86 anos e parte do patrimônio mundial da UNESCO, agora é novamente uma mesquita e irá ecoar orações muçulmanas. Como isso o faz se sentir? O que tem passado por sua cabeça nos últimos dias?
Orhan Pamuk: Em 1934, o fundador da República Turca, o grande Kemal Atatürk, converteu a Santa Sofia, ou Ayasofya Cami, num museu. Por que ele fez isso? Ele queria dizer ao mundo moderno, especialmente ao mundo ocidental, que "essa é uma grande arquitetura ortodoxa grega, a maior catedral grega de todas". "Agora quero convertê-la em museu, para dizer ao resto do mundo 'nós, turcos, somos seculares'. Queremos impor o laicismo francês ao nosso Estado e integrar a grande cultura e civilização europeia." Essa foi a decisão que ele tomou. Agora eles a estão desfazendo.
A Santa Sofia é extremamente importante tanto para muçulmanos como para cristãos como museu, como o senhor mencionou, era um espaço secular. Sendo assim, o que a decisão do presidente turco de transformá-la novamente em mesquita significa para a Turquia?
Hagia Sophia: reconversão em mesquita provoca debate
03:17
Significa simplesmente que não respeitamos mais o secularismo de Kemal Atatürk. Queremos ser populares, queremos ser populistas, queremos fazer experimentos com o islã popular e dizer ao resto do mundo que agora não estamos muito felizes com o Ocidente. Não é uma mensagem de que eu goste. Eu a critico, mas estou surpreso que a oposição aqui não a desafie. Por quê? Porque eles estão agindo e pensando que se trata de uma decisão muito popular. Infelizmente é uma decisão popular acolhida pelo povo turco. E o destino da Santa Sofia deve ser concedido pelo povo turco. Eu também sou cidadão turco e, como muitos milhões de laicos, sou contra. Mas nossas vozes, infelizmente, não são ouvidas.
E por que os descontentes com essa decisão não estão se manifestando?
Uma razão por que não estão levantando a voz é que não há liberdade de expressão na Turquia para contestar isso. Infelizmente eles também têm medo de dizer 'essa é a tradição secular de Kemal Atatürk. Por favor, não a mudemos'. Isso é importante no sentido de que a nação turca se distingue de outras nações muçulmanas pelo fato de sermos seculares e o resto do mundo saber disso.
Todo turco, mesmo que seja eleitor do AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), a sigla governista e islâmica, se orgulha secreta ou abertamente de ser diferente de outras nações muçulmanas, dizendo "como os europeus, nós somos seculares", e essa é a originalidade da Turquia . Agora estão nos tirando esse orgulho de sermos simultaneamente muçulmanos e seculares. Esse era o projeto de Kemal Atatürk.
A Basílica de Santa Sofia, ou Hagia Sophia, em Istambul, é objeto de uma disputa. Nacionalistas turcos querem transformar atual museu em mesquita; enquanto o patriarca dos cristãos ortodoxos quer que volte a ser igreja.
Foto: picture-alliance/Marius Becker
Marco arquitetônico
No ano de 532, o imperador romano Justiniano 1º, que residia em Constantinopla, ordenou a construção de uma imponente igreja, "como não existe desde a época de Adão e nunca existirá novamente". Mais de 10 mil operários trabalharam nela. Dentro de apenas 15 anos, a estrutura externa era inaugurada. Durante um milênio a basílica foi o maior templo do cristianismo.
Foto: imago/blickwinkel
Palco de representação estatal
Consta que Justiniano 1º investiu quase 150 toneladas de ouro na construção da Hagia Sophia ("Sagrada Sabedoria" em grego). Mas em breve ela precisou ser reformada: projetada com uma forma plana demais, sua cúpula desabou durante um terremoto. Em breve a basílica passou a ser utilizada como igreja do Estado. Desde meados do século 7º, quase todos os soberanos bizantinos foram coroados nela.
Foto: Getty Images
De igreja a mesquita
O domínio bizantino sobre Constantinopla teve fim em 1453, quando o sultão otomano Mehmet 2º conquistou a cidade e transformou a Hagia Sophia em mesquita. Cruzes cederam lugar à lua crescente, sinos e altar foram destruídos ou desmontados, mosaicos e pinturas murais foram caiados por cima. Com a construção do primeiro minarete, o prédio sacro ganhou aparência muçulmana também por fora.
Foto: public domain
De mesquita a museu
Em 1934, o fundador da República da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk (foto), transformou em museu a "Ayasofya", como é denominada em turco, na atual metrópole de Istambul. A secularização acarretou minuciosos trabalhos de restauração. Os antigos mosaicos bizantinos foram revelados, porém cuidou-se também para não destruir os posteriores acréscimos muçulmanos.
Foto: AP
Islã e cristianismo lado a lado
A agitada história da Hagia Sophia se apresenta a cada passo aos visitantes atuais: nesta foto, os nomes "Maomé" (esq.) e "Alá" (dir.) ladeiam Nossa Senhora com Jesus no colo (ao fundo). Notáveis são também as 40 janelas da grande cúpula: além de deixar entrar a luz, elas impedem que rachaduras se expandam, destruindo a estrutura cupular.
Foto: Bulent Kilic/AFP/Getty Images
Ícones bizantinos
O mosaico mais imponente da Basílica de Santa Sofia (como também é conhecida no mundo cristão) é uma imagem do século 14, na parede da galeria sul. Mesmo não estando completamente preservado, os rostos ainda estão bem visíveis: no meio aparece Jesus, como senhor do mundo, Maria está à sua esquerda e João, à direita.
Foto: STR/AFP/Getty Images
Proibido rezar
Hoje em dia é proibido orar na Hagia Sophia. Bento 16 também obedeceu essa determinação durante a visita que fez ao local, em 2006, a qual transcorreu sob forte esquema de segurança, devido aos protestos dos nacionalistas contra a presença do papa. Recentemente a associação nacionalista-conservadora Juventude Anatólia reuniu 15 milhões de assinaturas, para que o museu volte a ser mesquita.
Foto: Mustafa Ozer/AFP/Getty Images
Alto valor simbólico
Não faltam construções sacras muçulmanas nas cercanias da Hagia Sophia. Logo ao lado erguem-se os minaretes da Mesquita do Sultão Ahmed, também conhecida como Mesquita Azul (dir.). Os nacionalistas exigem a transformação da basílica em mesquita: ela simbolizaria a tomada de Constantinopla pelos otomanos, constituindo, portanto, um legado islâmico que precisa ser preservado.
Foto: picture-alliance/Arco
Reivindicações ortodoxas
O patriarca de Constantinopla Bartolomeu 1º também reivindica a Hagia Sophia. Há anos o líder honorífico de todos os cristãos ortodoxos apela para que a basílica seja reaberta à liturgia. "A Hagia Sophia foi construída para ser testemunha da fé cristã", argumenta o bispo ortodoxo.
Foto: picture-alliance/dpa
Destino em aberto
O futuro da Hagia Sophia é incerto. Até agora, somente o partido nacionalista MHP reivindica a transformação do museu em mesquita. Dois requerimentos seus já fracassaram no Parlamento. O governo turco não se manifesta sobre essa questão, aparentemente em reação a protestos internacionais. A Unesco também está preocupada: afinal, desde 1985 a Hagia Sophia é Patrimônio Cultural da Humanidade.