Controversa reforma da Justiça coloca Israel na pauta da política externa americana. Se entre democratas crescem as críticas às mudanças, republicanos capitalizam com promessa de apoio absoluto.
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Até o momento, para além da Ucrânia, a política externa do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tem se concentrado primordialmente na China. Porém, após a aprovação da reforma da Justiça e dos protestos continuados em Israel, o presidente americano também terá que dedicar mais atenção ao Oriente Médio, embora com isso só tenha a perder em seu próprio país.
Uma longa e estreita história une os Estados americano e israelense, assim como laços financeiros. Os EUA apoiam Israel anualmente com cerca de 3,8 bilhões de dólares, dos quais uma parcela considerável vai para defesa antimísseis e tecnologia militar.
Tel Aviv é, portanto, o maior receptor de ajuda militar americana desde o fim da Segunda Guerra Mundial, totalizando cerca de 158 bilhões de dólares. Mas agora, com a controversa reforma judicial israelense, essa cooperação está apresentando fissuras.
Biden classificou como unfortunate (lamentável) a aprovação da lei pelo Knesset, o parlamento israelense, em 24 de julho. Foram palavras inusuais e, até então, inauditas do chefe de Estado, que gosta de se referir a suas conexões estreitas com Israel.
Alguns dias antes, numa entrevista à emissora CNN, ele já manifestara preocupação com a situação política israelense. "Há alguns elementos muito extremos no governo. Sobretudo aqueles para quem os palestinos não têm nenhum direito", declarou.
Críticas à reforma do Judiciário se multiplicam
As declarações do democrata americano são também inusitadas por se tratar de um presidente em exercício pronunciando-se a respeito de uma controvérsia política interna de um país amigo, repetidamente e contra todos os costumes diplomáticos.
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A explicação para tal é a enorme pressão sob a qual ele se encontra. E esse rompimento de represas político não se deu apenas na Casa Branca, mas também no seio da comunidade judaica americana. Após a aprovação no Knesset, o Congresso Mundial Judaico publicou anúncios de página inteira em jornais como o Washington Post e o New York Times.
A mensagem: "Nós, judeus na diáspora, normalmente não nos intrometemos na política israelense [...] Somos sempre cuidadosos, a fim de respeitar a soberania. Mas hoje o futuro de Israel está em jogo. O único Estado do povo judeu está correndo perigo existencial imediato."
Até há pouco seria totalmente impensável a associação internacional das comunidades e organizações judaicas se manifestar publicamente de modo tão crítico em relação a Israel. Mas agora as vozes críticas se multiplicam, tanto em nível político quanto religioso.
O deputado democrata da Câmara dos Representantes Jerry Nadler, de 76 anos, de formação ortodoxa judaica, comentou, em declaração pública: "Hoje é um dia sombrio para a democracia israelense." Até então ele sempre defendera a política do Estado de Israel, mesmo nas crises mais graves.
Por outro lado, devido à questão palestina, há muito a ala progressista do Partido Democrata pressiona por um curso mais crítico em relação a Tel Aviv e desde a reforma do Judiciário exige que Biden suspenda o apoio financeiro ao país.
Aposta na volta de Trump?
O oposicionista Partido Republicano procura se aproveitar da delicada situação política. O ex-vice-presidente Mike Pence criticou: "As décadas de envolvimento dos democratas com a política interna de Israel são um erro." Nas últimas semanas, ele não perdeu nenhuma oportunidade para reafirmar seu "apoio absoluto" a Israel.
Então o que Biden poderia fazer nessas circunstâncias? O especialista Steven Cook, encarregado de Oriente Médio e África do think tank americano Council on Foreign Relations, o vê num dilema estratégico.
"O presidente não quer entrar em atrito com Israel antes das eleições, até porque seus adversários do Partido Republicano agora também declararam Israel uma causa sua, ao lado dos temas aborto, armas e menos impostos." Quanto a um corte da ajuda financeira a Israel, "a probabilidade é igual a zero".
O estrategista político Brett Bruen, que serviu à presidência de Barack Obama (2009-2017) e dirige a conceituada associação de gestão de crises políticas Global Situation Room, vê o assunto de forma semelhante: "É de fato improvável que o auxílio a Israel venha a ser suspenso, mas vamos ver mais ações simbólicas que mostram publicamente a nossa apreensão."
Entre essas ações "pode constar o adiamento de uma visita do primeiro-ministro [israelense] à Casa Branca, ou a restrição das viagens de altos funcionários americanos a Israel". Assim como outros analistas dos EUA, Bruen parte do princípio de que o premiê Benjamin Netanyahu esteja especulando com uma reeleição de Donald Trump em 2024.
Aaron David Miller, da Fundação Carnegie para a Paz Internacional, explica a razão de tais expectativas: "O governo Trump proporcionou a Israel quatro anos de bonança política. Ele reconheceu Jerusalém como a capital israelense." O republicano concedeu a Israel tanto a embaixada americana em Jerusalém como a soberania sobre as Colinas de Golã.
"No fundo, a direita dos republicanos, os conservadores, os evangélicos e os judeus conservadores dos Estados Unidos se agrupam em torno de Trump porque ele não faz perguntas. Para ele tanto faz o que governo Netanyahu vier a fazer desde que ele consiga o que quer de Netanyahu. E ele conseguirá: trata-se, no fim das contas, de apoio cego."
A longa história do processo de paz no Oriente Médio
Por mais de meio século, disputas entre israelenses e palestinos envolvendo terras, refugiados e locais sagrados permanecem sem solução. Veja um breve histórico sobre o conflito.
Foto: PATRICK BAZ/AFP/Getty Images
1967: Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU
A Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada em 22 de novembro de 1967, sugeria a troca de terras pela paz. Desde então, muitas das tentativas de estabelecer a paz na região referiram-se a ela. A determinação foi escrita de acordo com o Capítulo 6 da Carta da ONU, segundo o qual as resoluções são apenas recomendações e não ordens.
Foto: Getty Images/Keystone
1978: Acordos de Camp David
Em 1973, uma coalizão de Estados árabes liderada pelo Egito e pela Síria lutou contra Israel no Yom Kippur ou Guerra de Outubro. O conflito levou a negociações de paz secretas que renderam dois acordos 12 dias depois. Esta foto de 1979 mostra o então presidente egípcio Anwar Sadat, seu homólogo americano Jimmy Carter e o premiê israelense Menachem Begin após assinarem os acordos em Washington.
Foto: picture-alliance/AP Photo/B. Daugherty
1991: Conferência de Madri
Os EUA e a ex-União Soviética organizaram uma conferência na capital espanhola. As discussões envolveram Israel, Jordânia, Líbano, Síria e os palestinos – mas não da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) –, que se reuniam com negociadores israelenses pela primeira vez. Embora a conferência tenha alcançado pouco, ela criou a estrutura para negociações futuras mais produtivas.
Foto: picture-alliance/dpa/J. Hollander
1993: Primeiro Acordo de Oslo
Negociações na Noruega entre Israel e a OLP, o primeiro encontro direto entre as duas partes, resultaram no Acordo de Oslo. Assinado nos EUA em setembro de 1993, ele exigia que as tropas israelenses se retirassem da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e que uma autoridade palestina autônoma e interina fosse estabelecida por um período de transição de cinco anos. Um segundo acordo foi firmado em 1995.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Sachs
2000: Cúpula de Camp David
Com o objetivo de discutir fronteiras, segurança, assentamentos, refugiados e Jerusalém, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, convidou o premiê israelense Ehud Barak e o presidente da OLP Yasser Arafat para a base militar americana em julho de 2000. No entanto, o fracasso em chegar a um consenso em Camp David foi seguido por um novo levante palestino, a Segunda Intifada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/R. Edmonds
2002: Iniciativa de Paz Árabe
Após Camp David, seguiram-se encontros em Washington e depois no Cairo e Taba, no Egito – todos sem resultados. Mais tarde, em março de 2002, a Liga Árabe propôs a Iniciativa de Paz Árabe, convocando Israel a se retirar para as fronteiras anteriores a 1967 para que um Estado palestino fosse estabelecido na Cisjordânia e em Gaza. Em troca, os países árabes concordariam em reconhecer Israel.
Foto: Getty Images/C. Kealy
2003: Mapa da Paz
Com o objetivo de desenvolver um roteiro para a paz, EUA, UE, Rússia e ONU trabalharam juntos como o Quarteto do Oriente Médio. O então primeiro-ministro palestino Mahmoud Abbas aceitou o texto, mas seu homólogo israelense Ariel Sharon teve mais reservas. O cronograma previa um acordo final sobre uma solução de dois estados a ser alcançada em 2005. Infelizmente, ele nunca foi implementado.
Foto: Getty Iamges/AFP/J. Aruri
2007: Conferência de Annapolis
Em 2007, o então presidente dos EUA George W. Bush organizou uma conferência em Annapolis, Maryland, para relançar o processo de paz. O premiê israelense Ehud Olmert e o presidente da ANP Mahmoud Abbas participaram de conversas com autoridades do Quarteto e de outros Estados árabes. Ficou acordado que novas negociações seriam realizadas para se chegar a um acordo de paz até o final de 2008.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Thew
2010: Washington
Em 2010, o enviado dos EUA para o Oriente Médio, George Mitchell, convenceu o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a implementar uma moratória de 10 meses para assentamentos em territórios disputados. Mais tarde, Netanyahu e Abbas concordaram em relançar as negociações diretas para resolver todas as questões. Iniciadas em setembro de 2010, as negociações chegaram a um impasse dentro de semanas.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Milner
Ciclo de violência e cessar-fogo
Uma nova rodada de violência estourou dentro e ao redor de Gaza no final de 2012. Um cessar-fogo foi alcançado entre Israel e os que dominavam a Faixa de Gaza, mas quebrado em junho de 2014, quando o sequestro e assassinato de três adolescentes em mais violência. O conflito terminou com um novo cessar-fogo em 26 de agosto de 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
2017: Conferência de Paris
A fim de discutir o conflito entre israelenses e palestinos, enviados de mais de 70 países se reuniram em Paris. Netanyahu, porém, viu as negociações como uma armadilha contra seu país. Tampouco representantes israelenses ou palestinos compareceram à cúpula. "Uma solução de dois Estados é a única possível", disse o ministro francês das Relações Exteriores Jean-Marc Ayrault, na abertura do evento.
Foto: Reuters/T. Samson
2017: Deterioração das relações
Apesar de começar otimista, o ano de 2017 trouxe ainda mais estagnação no processo de paz. No verão do hemisfério norte, um ataque contra a polícia israelense no Monte do Templo, um local sagrado para judeus e muçulmanos, gerou confrontos mortais. Em seguida, o plano do então presidente dos EUA, Donald Trump, de transferir a embaixada americana para Jerusalém minou ainda mais os esforços de paz.
Foto: Reuters/A. Awad
2020: Tiro de Trump sai pela culatra
Trump apresentou um plano de paz que paralisava a construção de assentamentos israelenses, mas mantinha o controle de Israel sobre a maioria do que já havia construído ilegalmente. O plano dobrava o território controlado pelos palestinos, mas exigia a aceitação dos assentamentos construídos anteriormente na Cisjordânia como território israelense. Os palestinos rejeitaram a proposta.
Foto: Reuters/M. Salem
2021: Conflito eclode novamente
Planos de despejar quatro famílias palestinas e dar suas casas em Jerusalém Oriental a colonos judeus levaram a uma escalada da violência em maio de 2021. O Hamas disparou foguetes contra Israel, enquanto ataques aéreos militares israelenses destruíram prédios na Faixa de Gaza. A comunidade internacional pediu o fim da violência e que ambos os lados voltem à mesa de negociações.
Foto: Mahmud Hams/AFP
2023: Terrorismo do Hamas e retaliações de Israel
No início da manhã de 7 de outubro, terroristas do grupo radical islâmico Hamas romperam barreiras em alguns pontos da Faixa de Gaza, na fronteira com Israel, e, em território israelense, feriram e mataram centenas de pessoas, além de sequestrarem mais de uma centena. Devido a isso, Israel declarou "estado de guerra" e iniciou uma série de bombardeios, deixando partes da Cidade de Gaza em ruínas.