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Sírio salva mãe da guerra, mas a perde para covid-19

Karina Gomes
15 de maio de 2020

Após fugir no conflito na Síria, Abdulbaset Jarour lutou por seis anos para trazer a mãe de Aleppo para São Paulo. Depois de pouco mais de um ano no Brasil, ela morreu em decorrência do novo coronavírus.

O refugiado sírio Abdulbaset Jarour ao lado da mãe
"Foi o maior sonho da minha vida", diz Abdulbaset Jarour sobre a chegada da mãe ao BrasilFoto: Privat

No último domingo (10/05), Dia das Mães, Abdulbaset Jarour pedia, num ato de amor e em plena avenida Paulista, em São Paulo, que todos ficassem em casa. O refugiado sírio preferiu passar a data comemorativa mais perto da mãe, internada há poucos metros dali, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. A placa amarrada ao corpo do jovem de 30 anos pedia: "É hora de ter paz e união para combater a covid-19. Voltem para casa. Peço, por favor, oração pela minha mãe."

Jarour saiu para as ruas enquanto apoiadores do presidente Jair Bolsonaro protestavam contra as medidas de isolamento. Já fazia duas semanas desde o último encontro com a mãe, Khadouj Makhzoum, que completou 55 anos de idade no dia 16 de abril. O jovem correu para a frente do hospital e gritou uma mensagem de conforto, na esperança de que a mãe pudesse ouvi-lo na unidade de terapia intensiva para pacientes contaminados com o novo coronavírus. "Mãe, você vai ficar bem!", disse.

A refugiada síria, que tinha sete filhos, preparava-se para se mudar para o Líbano e se juntar à filha Sedra, que refugiou-se com ela no Brasil, mas não se adaptou ao país e desenvolveu uma depressão grave. Sedra foi ao Líbano em fevereiro, e Khadouj viajaria em março, mas a pandemia da covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus, trouxe incerteza para a família.

No dia 11 de março, a mãe de Abdulbaset, que tinha pressão alta, problemas no coração e diabetes, passou a sentir-se muito mal em meio à febre, tosse e dor de cabeça. Durante uma semana, mãe e filho foram repetidas vezes a unidades de saúde, mas foram enviados para casa. Quando foi finalmente internada, Khadouj já tinha desenvolvido um quadro grave da doença.

"O médico me disse que o pulmão da minha mãe estava dominado pelo novo coronavírus", lembra. "Na última vez que a vi, no dia 24 de abril, ela me culpou por não ter deixado que ela fosse antes para o Líbano. A morte nos perseguiu da guerra da Síria até aqui no Brasil", lamenta Abdulbaset, que enterrou o corpo da mãe nesta quarta-feira (13/05), ao lado de amigos do Haiti, do Gana e da República Democrática do Congo no Cemitério Islâmico do Brasil, em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo.

Há pouco mais de um ano no Brasil, Khadouj ainda não falava português. Os médicos pediram a ajuda de Abdulbaset para se comunicar com a refugiada síria no hospital. "Ela me disse: 'Estou muito mal.' Falou que estava preocupada com os meus irmãos e pediu que as amigas fizessem orações. Conforme ela falava, os níveis de respiração caíam", conta.

Abdulbaset Jarour homenageou a mãe no último Dia das Mães, três dias antes de ela morrerFoto: Privat

Como a mãe tinha dificuldades para enxergar devido à diabetes, Abdulbaset escreveu comandos médicos importantes em letras grandes num cartaz: "Vire para o lado" e "Vire de bruços", em árabe. Foram 21 dias na UTI até as 5h30 desta quarta-feira.

"Às 0h30, um médico me ligou e pediu para eu me preparar, porque a condição da minha mãe era muito grave. Eu dizia: 'Doutor, ela precisa voltar para a terra dela'", lembra. Depois da notícia do falecimento, horas depois, Abdulbaset gritou: "Me perdoe, mãe."

"Eu olho para o céu e só vejo preto", conta o refugiado sírio, que deu entrevista à DW Brasil vestido de preto e com uma música com citações do Alcorão ao fundo.

Em busca de refúgio

"Eu não queria servir ao Exército sírio. Não imaginava matar nenhuma vida síria e também não queria morrer." Este era o pensamento de Abdulbaset quando estava prestes a ingressar no serviço militar obrigatório, aos 20 anos de idade e em meio à Primavera Árabe.

Abdul nasceu e cresceu em Aleppo, a cidade mais populosa da Síria, onde levava uma vida tranquila com a mãe e os seis irmãos. Devido ao serviço militar, teve de encerrar o curso universitário de Administração e fechar a própria empresa de venda de acessórios e produtos eletrônicos. "Tinha meus sonhos, queria voltar para minha vida normal", lembra.

Devido às tensões em Aleppo, foi forçado, em 2012, a mudar-se de cidade e servir o Exército na capital, Damasco. Foi a última vez que viu a família. O reencontro aconteceu às vésperas do Natal de 2018, em São Paulo, seis anos depois.

Khadouj Makhzoum, de 55 anos, apresentou os primeiro sintomas da covid-19 em 11 de marçoFoto: Privat

A guerra civil se agravava, e Abdulbaset estava mergulhado em traumas. Um bombardeio que matou alguns de seus amigos o levou ao limite. Silenciosamente, planejou uma fuga arriscada para o Líbano.

"Quando cheguei a Beirute, chorei de felicidade. Vi aquelas árvores, vi os ônibus passando e comecei a acessar as memórias de tudo o que tinha vivido naqueles últimos anos", conta.

Ainda assim, Abdulbaset se sentia inseguro e perseguido. Depois de respostas negativas das embaixadas do Canadá e da Austrália no Líbano, a embaixada brasileira o acolheu. Em uma semana, conseguiu um visto e fez a viagem sem volta para o Brasil no dia 8 de fevereiro de 2014.

Sonho realizado

Entre o dia do reencontro com a mãe e a despedida no Brasil, devido à morte de Khadouj, foram um ano e cinco meses de convivência. Quando Abdulbaset chegou a São Paulo, em 2014, suas irmãs se espalharam pelo mundo. Uma foi para o Iraque, outra foi para o Líbano, e outra, para o Canadá. Em 2015, uma das irmãs, que ficou em Aleppo, foi atingida por uma bomba. Perdeu uma perna e o marido e também fugiu da Síria.

"Minha mãe precisa voltar para a terra dela, doutor"

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"Meu irmão caçula foi para a Turquia, então, sobraram só minha mãe e minha irmã Sedra naquele sofrimento que era a vida em Aleppo. De 2016 em diante, comecei a ficar muito preocupado com minha família. Decidi que seria minha primeira conquista trazê-las para o Brasil", conta.

Abdulbaset foi ao Líbano como intérprete de uma equipe de jornalistas brasileiros e lá conseguiu solicitar vistos para a mãe e a irmã. "Elas chegaram no dia 16 de dezembro de 2018. Foi o maior sonho da minha vida, a maior conquista. Fiquei tão feliz em abraçar minha mãe", diz. "Aquele momento, pra mim, foi como se eu tivesse ganhado o mundo."

"Tem pessoas morrendo em todo mundo. E, mesmo assim, tem muitas pessoas sem empatia", lamenta ao se referir aos que se opõem às medidas de isolamento social impostas para conter a pandemia do coronavírus. "Nós, refugiados, viemos até aqui para salvar as nossas vidas. As pessoas que estão aqui no Brasil são vítimas dos políticos", critica.

Abdulbaset gosta de se apelidar de 'brasisírio'. "Hoje, falo o português muito melhor do que o árabe", conta o jovem, que fundou a ONG África do Coração, liderada por migrantes para apoiar outros migrantes.

"O Brasil me recebeu muito bem. O que eu puder fazer para ajudar os brasileiros vou fazer. Quando a vida me tornou um refugiado, eu entendi o que significa o destino. É a vida que manda, como um rio, e nós não temos controle", conclui.

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