Relatório aponta omissão da França em genocídio de Ruanda
27 de março de 2021
Solicitada pelo governo francês, investigação apurou papel de Paris em massacre que deixou 800 mil mortos. Documento indica ainda responsabilidade do então presidente François Mitterrand.
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A França teria um "fechado os olhos" diante dos eventos que culminaram no genocídio de Ruanda em 1994 e, com isso, teria "uma responsabilidade pesada e avassaladora" no massacre, indicou o relatório de uma investigação, solicitada pelo governo francês, divulgado nesta sexta-feira (26/03).
Resultado de um inquérito de dois anos conduzido por uma comissão de especialistas, o relatório indica uma série de falhas graves, omissões e imprudências por parte do governo francês da época, que foi incapaz de perceber os preparativos que resultaram no genocídio de 800 mil pessoas, principalmente da minoria tutsis, entre abril e julho de 1994.
A principal conclusão do documento indica o longo envolvimento do governo francês com "um regime que encorajava massacres racistas, tornando-se cega diante da preparação do genocídio". O relatório afirma que Paris aceitou plenamente a lógica estabelecida pelo então governo de Ruanda de que os rebeldes tutsis seriam um perigo real para o regime autoritário ruandês.
O texto também aponta ainda a responsabilidade do então presidente francês François Mitterrand, amigo íntimo do então homólogo ruandês Juvenal Habyarimana, assassinado em 6 de abril de 1994. A morte de Habyarimana desencadeou o brutal genocídio que durou 100 dias. "Essa amizade explica a extensa implicação de todos os serviços do Palácio do Eliseu" na política em relação à Ruanda, diz o relatório.
Cumplicidade descartada
A comissão presidida pelo historiador Vicent Duclert, porém, destacou que não foi encontrado "nenhum documento" que mostrasse "a cúmplice da França" no genocídio. O especialista, no entanto, afirmou que Paris "tem uma responsabilidade inegável" no acontecido por ter apoiado um governo cada vez mais extremista.
As marcas do genocídio em Ruanda, 25 anos depois
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Duclert apontou ainda o "fracasso" da política externa francesa, que se concentrou em assegurar "a estabilidade do Estado ruandês". O historiador afirmou ainda que Mitterrand, em vez de tentar acabar com as políticas racistas contra a minoria tutsi, apoiou Habyarimana que se aproximava cada vez mais de extremistas. "Nada foi previsto e foi insistido numa lógica neocolonialista", acrescenta.
Com quase mil páginas, o relatório analisou documentos diplomáticos e notas confidenciais. Além da relação pessoal entre Mitterrand e Habyarimana, a investigação revelou ainda que havia uma obsessão em fazer de Ruanda um território de defesa da Francofonia, o que justificou "a entrega de milhares de armas e munições ao regime de Habyarimana, assim como a participação de militares franceses no treinamento das Forças Armadas ruandesas".
O relatório mostra que o governo francês ignorou alertas de ONGs, diplomatas e do serviço secreto sobre o avanço do extremismo em Ruanda e o risco de um genocídio contra tutsis. Além disso, destaca que, quando o massacre começou, Paris demorou a romper com o regime ruandês e também se recusou posteriormente a prender os mentores do genocídio, que fugiram para zonas de controle francesa.
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Passo importante
Em comunicado, o presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que espera que o relatório possa ajudar Paris a se reaproximar de Ruanda. "Ao mesmo tempo, a França continuará seus esforços na luta contra a impunidade dos responsáveis pelo genocídio", acrescentou.
Vários suspeitos de participarem do massacre fugiram para a França posteriormente. Porém, apenas poucos deles foram a julgamento.
Já Ruanda afirmou que o relatório é "um passo importante para esclarecer o papel da França" no genocídio.
O massacre terminou em julho de 1994. Desde então, a França mantém relações tensas com Ruanda, que são marcadas pelo rompimento das relações diplomáticas entre os dois países em 2006.
cn (AFP, EFE, DW)
O genocídio de Ruanda
O genocídio de Ruanda, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: Timothy Kisambira
Estopim do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação de rádio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura" incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura esportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. Ele permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste do Congo.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do governo. Os rebeldes assumiram o controle da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o presidente de Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebês, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.