1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

Reparações, já!

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
23 de novembro de 2023

Em 1993, ativistas negros promoveram "pendura negra" para pedir políticas de reparação histórica. Hoje, 30 anos depois, o Banco do Brasil pede desculpas ao povo negro brasileiro, mas isso é apenas o ponto de partida.

"Brasil tem uma dívida histórica com a população negra"Foto: Dario Oliveira/Zuma/imago images

No dia 19 de novembro de 1993, um grupo formado por 12 homens e mulheres negros foi almoçar no Hotel Maksoud Plaza, que tinha um dos restaurantes 5 estrelas mais caros de São Paulo. Pratos caros e sofisticados foram pedidos, gerando um gasto de 700,00 dólares – um valor significativamente alto para a época.

Na hora que a conta chegou, os 12 foram enfáticos em dizer que o restaurante deveria debitar o valor na dívida histórica que o país tinha com a população negra. Não haveria pagamento algum.

Os seguranças chegaram rapidamente e sem negociação possível, a polícia militar foi chamada. Como a violência já havia sido ensaiada, o grupo sabiamente criou um cordão humano para sair do restaurante, e depois se dispersaram pela Avenida Paulista, que ficava próxima ao hotel. A estratégia evitou que eles fossem presos.

Esses 12 homens e mulheres eram militantes do Movimento Negro e naquele dia 19 de novembro eles anunciavam o Movimento Pelas Reparações dos Afrodescendentes. Não pagar a conta de um dos restaurantes mais caros de São Paulo foi uma estratégia com duas intenções muito evidentes: reforçar como o racismo funcionava no Brasil e chamar a atenção da imprensa e da opinião pública para a demanda que eles defendiam.

A palavra de ordem era "Reparações, já!". E embora eu tivesse pouco mais de 10 anos na época, lembro com nitidez a tensão e euforia que pairou sob esse dia da "pendura negra" porque um dos 12 militantes que estiveram no Maksoud Plaza era meu pai.

É preciso dizer que o mesmo Maksoud Plaza já havia tomado um belo "calote" em 1981, quando alunos da Faculdade de Direito da USP, realizaram o seu "tradicional" pendura para comemorar o dia 11 de agosto. A conta foi maior, mas o uso da violência e das forças de repressão menor. Afinal, sabemos bem qual a cor da imensa maioria dos estudantes de direito da USP na década de 1980 –quadro que mudou pouco desde então.

Pedido de desculpas simbólico

A ideia desses 12 militantes era fazer uso dessa "tradição" circunscrita quase que exclusivamente aos brancos ricos da cidade, e por isso mesmo tolerada, com uma grande diferença: enegrecendo-a. Eles escolheram a dedo a data que antecede o 20 de novembro – quando se rememora a morte de Zumbi dos Palmares, e hoje se celebra o Dia da Consciência Negra – para mostrar que o Brasil tinha uma dívida histórica com a população negra e que essa dívida tinha um valor estratosférico: 700 dólares não dariam nem para o começo.

O que eles defendiam ali era a urgência e o dever da criação de políticas de reparação simbólica e material para toda a população negra do país, não só pelos mais de 300 anos de escravidão, mas pela marginalização e exclusão social, política e econômica experimentada em toda a República brasileira. Uma reparação que passava, inclusive, pela ideia de indenização financeira.

Hoje, 30 anos depois, em 18 de novembro, o Banco do Brasil, o primeiro banco a ser criado no país, pediu desculpas ao povo negro brasileiro. O motivo – aqui já tratado – foi um inquérito aberto pelo Ministério Público a partir de pesquisa feitas por historiadores e historiadoras brasileiros (grupo no qual me incluo) que demonstram que a segunda criação do Banco do Brasil, em 1853, teve como base o capital proveniente do tráfico ilegal de africanos escravizados. Na verdade, boa parte das fortunas brasileiras construídas na segunda metade do século 19 – muitas vinculadas à produção e exportação de café – foram feitas a partir da compra, venda e escravização ilegal de africanos, segundo as leis que vigoravam no Brasil desde 1831. Ou seja, o Banco do Brasil está longe de ser a única instituição brasileira a se desculpar, a pensar e a efetivar políticas de reparação.

Sem dúvidas que o pedido de desculpas do Banco do Brasil é simbólico. E não me parece casual o fato deste pedido ter acontecido justamente quando uma mulher negra é, pela primeira vez na história, a presidente da instituição. Mas as simbologias são pontos de partida fundamentais para a criação de políticas de reparação. É preciso reconhecer a ordenação racista para poder transformá-la.

Lutas dando frutos

Nesse novembro negro, pudemos observar como as lutas dos movimentos negros do país seguem colhendo frutos para todo o Brasil. Como pontuado, a própria ideia de reparação foi pautada pelo movimento negro, assim como a lei 10.639 que completa 20 anos em 2023, a criação de um ministério específico para promover a Igualdade Racial do Brasil, a implementação das cotas raciais nas universidades – que foi mantida e ampliada para a população quilombola.

Há também os frutos mais miúdos, da vida corrida, das famílias e comunidades negras que se organizam para sobreviver e tentar reinventar um mundo que segue dizendo onde e como essas pessoas devem ser e estar.

E nesse mesmo novembro negro, foram divulgados novos dados sobre a segurança pública, que também compõe um retrato contundente da força estrutural do racismo. A mesma juventude negra, que poderia e deveria estar nas universidades, está sendo sistematicamente encarcerada ou morta, muitas vezes em decorrência de ações de órgãos de repressão do Estado. São esses mesmos jovens negros que são obrigados a abandonar as escolas para trabalhar e ajudar em casa. O feminicídio mata mais mulheres negras... Desde os tempos da escravidão, as violências física, moral, sexual, simbólica e psicológica organizam a gramática que narra as vidas negras.

Como bem disse Millôr Fernandes: o Brasil tem um enorme passado pela frente.

Por isso, assim como foi clamado há 30 anos: Reparações, já!

__________________________________

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

Pular a seção Mais sobre este assunto
Pular a seção Mais dessa coluna

Mais dessa coluna

Mostrar mais conteúdo
Pular a seção Sobre esta coluna

Sobre esta coluna

Negros Trópicos

Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.