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Retratos literários no cinema germânico

Ricardo Domeneck
13 de fevereiro de 2018

Como o cinema tem retratado a vida de escritores, tanto reais como fictícios? Uma pequena lista de favoritos, mesclando as duas artes.

Em "A vida dos outros", Ulrich Mühe interpreta um agente da polícia secreta da Alemanha Oriental, a Stasi
Em "A vida dos outros", Ulrich Mühe interpreta um agente da polícia secreta da Alemanha Oriental, a StasiFoto: picture-alliance/dpa/Buena Vista

O poeta americano Frank O'Hara escreveu em seu manifesto sobre o "Personismo" que "ninguém deve experimentar algo se não quiser, e a poesia não deve forçá-los a isso. Eu gosto de cinema também." A melhor parte é que as duas artes não se excluem. Nada como um filme bem escrito, com um roteiro poderoso. Mas me refiro neste artigo aos momentos em que o cinema dedicou-se a retratar, com carinho ou sarcasmo, a vida de escritores. Vou recomendar aqui quatro exemplos que estão entre os meus favoritos.

Vamos começar com o mais difícil talvez. Ou será apenas difícil para escritores ao se verem retratados de forma tão impiedosa na tela? O assado de satã (Satansbraten, 1976), de Rainer Werner Fassbinder, está entre os melhores e, mesmo assim, menos conhecidos filmes do diretor alemão. O título original é um xingamento – não muito usado mais – contra pessoas, geralmente jovens, que não se preocupam com as consequências de seus atos desde que eles lhes tragam vantagens. Uma mistura de "folgado" com "cara de pau".

No filme, o "poeta da Revolução" Walter Kranz (interpretado de forma escandalosa por Kurt Raab) sofre de um bloqueio de escritor há dois anos e passa por dificuldades financeiras com sua mulher, ainda que gaste o pouco que tem com bebida e em casas de prostituição. Quando seu agente literário nega a ele um adiantamento, o poeta-bufão decide cometer um crime que o leva a uma fuga da polícia e à condenação pelo resto da sociedade. É um dos retratos mais mordazes sobre um literato que já vi, bem ao estilo intransigente do prolífico Fassbinder. Aos 30 anos de idade, esse já era seu vigésimo sexto filme. Em poucos anos, em 1982, ele seria encontrado morto em seu apartamento de Munique.

O segundo é um retrato dramático sobre a vida de um escritor sob o regime comunista da Alemanha Oriental: A vida dos outros (Das Leben der Anderen, 2006), de Florian Henckel von Donnersmarck. Nele, o dramaturgo e poeta Georg Dreyman (interpretado por Sebastian Koch) cai sob a vigilância da Stasi, o serviço secreto do regime, tendo seu apartamento grampeado sob a direção do agente Gerd Wiesler, interpretado de forma magistral e sutil pelo grande Ulrich Mühe – um dos maiores atores alemães dos últimos anos.

Não se trata sequer de política, mas de corrupção: a investigação começa simplesmente porque o ministro da Cultura queria se livrar do escritor, interessado na sua esposa, a atriz Christa-Maria Sieland, interpretada por Martina Gedeck. Quando o escritor decide escrever contra o regime após o suicídio do amigo, um diretor de teatro proibido de trabalhar, o filme se torna um thriller e um drama, já que o agente da Stasi começa a ter dúvidas de seu papel no regime ao ser confrontado com a arte e a vida dos artistas que ele vigiava. É um retrato romântico do poder transformador da arte, mas feito com delicadeza, especialmente pelo trabalho dos atores. Gosto muito do filme.

Eu encerraria a lista com dois documentários mais recentes. Um deles eu já discuti aqui, sobre a correspondência entre Ingeborg Bachmann e Paul Celan, levada às telas pela austríaca Ruth Beckermann com o filme Os sonhados (Die Geträumten), no qual Anja Plaschg, a excelente cantora-compositora que se apresenta como Soap&Skin, interpreta Ingerborg Bachmann. Paul Celan é interpretado pelo belíssimo Laurence Rupp.

O mais recente que vi, no entanto, foi um documentário no qual seguimos o autor Peter Handke por alguns dias em sua casa na Áustria, enquanto escreve, cuida do jardim, conversa com a diretora, Corinna Belz. O filme chama-se Peter Handke - Bin im Wald. Kann sein, daß ich mich verspäte (Peter Handke - Estou na floresta, pode ser que me atrase, em tradução livre). Seu atraso vale a pena, e vale certamente seus 90 minutos, acompanhando a fala deste antigo enfant terrible da língua que parece ter se amansado na velhice, adquirindo uma doçura crepuscular.

Na coluna  Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.

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