Para especialistas, este incidente foi o principal fato que desencadeou a destituição de Jango do poder e consequente instauração da ditadura militar no Brasil.
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Considerada o principal estopim para o golpe de 1964, que instituiu a ditadura militar no Brasil, a Revolta dos Marinheiros ocorreu há 60 anos, entre 25 e 27 de março, no Rio de Janeiro. Mais especificamente na sede do Sindicato dos Metalúrgicos, onde se reuniu a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) para a comemoração do segundo aniversário da entidade, em um evento que reuniu cerca de 2 mil marinheiros.
"Foi, de fato, o evento que catalisou o desencadeamento do golpe", afirma o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). "Se o comício da Central do Brasil lançou os conservadores civis às ruas pelo golpe de Estado, a reunião da Associação de Marinheiros foi alardeada como pretexto para a obtenção de apoio nas próprias Forças Armadas."
O ato reuniu sindicalistas, líderes estudantis, o político Leonel Brizola e o marinheiro João Cândido, que havia liderado a célebre Revolta da Chibata em 1910. Até hoje há uma controversa sobre a legalidade do evento. Por um lado, a associação era uma entidade registrada em cartório civil, os marinheiros participantes estavam em folga e a comemoração não ocorreu em uma repartição militar — ou seja, tudo conforme as regras vigentes. Por outro lado, a Marinha não havia reconhecido a representatividade da AMFNB, embora nenhum documento houvesse também registrado o contrário. Ou seja: a instituição não aprova, mas também não havia proibido a existência do grupo.
"Os marinheiros se rebelaram contra as determinações de seus comandos", sintetiza o historiador Daniel Aarão dos Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Jango, o presidente João Goulart, chegou a ser convidado para o evento, mas não compareceu — relatos da época dizem que ele tinha sido aconselhado por autoridades militares, inclusive o então ministro da Marinha, Silvio Mota, a não se misturar ao evento, dado o clima vigente. "O episódio da Revolta dos Marinheiros abalou muito os militares que apoiavam Jango, que eram muito numerosos e significativos", comenta Reis.
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Assembleia
O encontro não era meramente festivo. Na pauta estava a luta dos marinheiros por melhores condições de trabalho, moradia e alimentação, sobretudo na comparação com os oficiais da Marinha, que tinham benesses melhores do que seus subordinados de segunda classe.
A AMFNB reunia militares de baixa patente e o encontro tinha uma pauta considerada de insubordinação frente às autoridades do setor, com o apoio da esquerda. Os militantes requeriam melhores condições e alguns direitos equiparáveis aos dos oficiais. Eles não estavam armados.
O ministro Mota enviou um contingente de fuzileiros para prender os marujos no evento. Mas não deu certo. O que ocorreu foi que os militares encarregados de cumprir a função acabaram aderindo à manifestação. A solução, então, foi convocar o Exército, que decidiu cercar o edifício, sufocar o princípio de rebelião e, por fim, deter as lideranças do movimento.
"Os marinheiros haviam se rebelado contra determinações do comando. Os fuzileiros navais foram deslocados para conter aquela assembleia e, ao final, aderiram ao grupo. Foi necessário chamar tropas do Exército para que a marinheirada resolvesse se render. Mas com o compromisso de que seriam anistiados imediatamente", resume Reis.
"Essa rebelião foi, a meu ver, determinante para precipitar os golpistas mais decididos. E para adentralizar a resistência dos oficiais legalistas [os militares que se tornaram resistência à ditadura]", complementa o historiador.
Contrariado, o presidente Jango decidiu mandar substituir o ministro Mota. Paulo Mário da Cunha Rodrigues, que assumiu o cargo no dia 27, determinou, como primeiro ato de sua gestão, a libertação imediata dos revoltosos detidos.
Cabo Anselmo
José Anselmo dos Santos, mais conhecido como cabo Anselmo, foi um militar que se tornou conhecido após este episódio. Ele era o presidente da AMFNB e é apontado como o principal líder da revolta.
Nessa época ligado à esquerda, ele acabaria se aliando ao governo militar nos anos 1970. Passou a agir como agente duplo, infiltrado na resistência, suprindo o regime ditatorial de informações acerca dos opositores.
Há informações, embora controversas, de que ele já fosse um agente duplo ainda antes do golpe — nesse sentido, ele já teria agido na Revolta dos Marinheiros sob o mando daqueles que planejavam a ditadura. Ex-diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do Rio de Janeiro, Cecil Borer sustentava essa tese.
Rebeldia e golpe
Mas a questão não foi resolvida assim. Na realidade, tanto a rebelião quanto a anistia aos revoltosos foram entendidas pela cúpula da Marinha como uma quebra da hierarquia. Isso fortaleceu o discurso golpista das Forças Armadas. E, claro, isolou ainda mais Jango — que, dali a poucos dias, seria deposto num golpe.
"Na madrugada de 1º de abril, a farsa que alimentava essas motivações vestiu a máscara da tragédia ética e humana que aterrorizou a sociedade brasileira nos 24 anos seguintes, até que tivéssemos a nova Constituição, em 1988", resume Martinez.
A ditadura brasileira (1964-1985)
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.