Rolezinhos são reflexo da exclusão e discriminação, avaliam especialistas
22 de janeiro de 2014Os rolezinhos são uma forma de expressão encontrada por jovens que se sentem excluídos dentro do espaço urbano, avaliam especialistas ouvidos pela DW Brasil. A realização desse tipo de evento em shopping centers – espaços de lazer e consumo comumente associados às classes mais ricas – é uma forma de chamar a atenção, através do contraste, para as desigualdades existentes no país.
Na opinião do arquiteto e urbanista Valter Caldana, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, os shoppings tomaram o lugar dos espaços públicos tradicionais, como praças e ruas, com a desvantagem de oferecer um convívio artificial que nega as relações sociais e urbanas.
"Entre o shopping center – que representa a mercantilização total – e a praça – o espaço público e livre por excelência –, está a rua. Com a rodoviarização, transformamos nossos espaços públicos, que deveriam ser de 'estar', em locais de passagem", avalia.
Segundo o urbanista, apesar de não terem essa finalidade, os shoppings têm se tornado instrumentos de segregação. "Nos últimos anos, o cidadão foi sendo comprimido e confinado. Passamos a ter apenas alguns espaços – de modo geral fechados – para extravasar a energia coletiva que se tem na cidade. Os rolezinhos são uma expressão desse desequilíbrio."
Cidades divididas
A professora Ermínia Maricato, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, avalia que, no Brasil, a sociedade faz de conta que a lei se aplica de forma igual para todos, especialmente na área de planejamento urbanístico.
"Se medirmos, por exemplo, os valores de recursos públicos destinados aos bairros de São Paulo, perceberemos um abismo. Há bairros que são varridos, onde há árvores que são podadas, onde o asfalto é renovado, onde há todas as condições de saneamento e iluminação pública. Em outros, não há o mínimo, nem o bueiro que deveria ser limpo. A importância fundamental dos rolezinhos é desnudar essa contradição e o fato de que uma parte da sociedade prefere ignorá-la", comenta.
A falta de mobilidade também entra em jogo. Para a urbanista, os jovens da periferia têm uma dificuldade muito grande de se deslocar nas grandes cidades por causa da distância. "Eles vivem em bairros onde há muito pouca oferta do que caracteriza a condição de vida urbana. Esse apartheid não assumido é o que está sendo colocado em discussão."
Rolezinho como ato político
A professora de antropologia do desenvolvimento Rosana Pinheiro Machado, da Universidade de Oxford, fez, em 2009, um estudo sobre os chamados "bondes de marca" [grupo de jovens vestindo roupas de grife que se reúne para um passeio] na periferia de Porto Alegre. "Durante a pesquisa, os jovens sempre diziam o quanto é difícil ser visto como pobre e favelado. O ato de se vestir e ir ao shopping com uma roupa bonita serve para ser visto de forma digna. Sem dúvida, esse é um ato de ocupação de um espaço que não foi designado para eles", afirma.
A antropóloga considera que a distinção das camadas sociais pelo consumo cria uma forte "demarcação de fronteiras". Assim, um ato puramente de diversão, como os rolezinhos, torna-se politizado, apesar de os participantes não terem essa consciência. "A periferia sempre foi relativamente invisível nos movimentos sociais. Ela está se politizando de uma maneira gradual e complexa. Os jovens percebem que são excluídos e não aceitam mais esse processo de negação."
Para a arquiteta Maricato, os jovens da periferia simplesmente não existem para as cidades, da forma como elas estão hoje organizadas. "O que é negado a eles é a própria cidade, a vida urbana. É negar a existência de um sujeito em todos os sentidos. É óbvio que o capitalismo quer alcançá-los, mas isso não implica ter direito à cidade. Isso implica que eles vão consumir, mas lá na ‘senzala'."
A professora Maria Lúcia Refinetti Martins, também da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, compartilha a mesma opinião. "Essa dimensão de não encontrar um espaço de reconhecimento e de identidade é fruto desse modelo consumista em que vivemos."
Seleção pela aparência
As dezenas de liminares concedidas pela Justiça aos shopping centers são um problema grave, na opinião do advogado Diego Werneck. O professor da Fundação Getúlio Vargas avalia que, diretamente, as decisões judiciais favoráveis aos donos dos estabelecimentos não criam, sozinhas, uma diferenciação, mas, quando integrantes de um rolezinho são impedidos de entrar num shopping, é legitimado um mecanismo para identificar quem é integrante e quem não é.
"Na prática – o que não é nada surpreendente – os seguranças do shopping acabam fazendo uma seleção baseada na aparência. E o judiciário acaba por estruturar essa discriminação", afirma.
O professor de estudos organizacionais Rafael Alcadipani, da Fundação Getúlio Vargas, diz que a presença das camadas sociais mais pobres em espaços típicos das classes média e alta gera incômodo. "Os shoppings representam a privatização dos nossos hobbies. Mas quando um jovem da periferia quer ocupar esses locais, a coisa fica mais complicada."
Para o urbanista Caldana, a reação das autoridades – com a permissão de intervenção policial e aplicação de multas, por exemplo – foi um erro. "Foi de uma primariedade fantástica, foi racista e segregadora. Em vez de resolver, aumentou o problema. A questão não pode ser tratada como banditismo, mas como um problema urbano contemporâneo."
Segundo Caldana, o saldo positivo da discussão sobre os rolezinhos será uma maior conscientização da necessidade de redirecionamento da construção da cidade. "A valorização dos espaços públicos não pode ser apenas um discurso, tem que ser real. No Brasil, a sociedade está mostrando nas ruas, com manifestações desde maio de 2013, que o colapso dos espaços públicos e da qualidade de vida urbana chegou a um ponto intolerável."