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"Roubaram nossa liberdade"

Renata Malkes, de Mariana5 de dezembro de 2015

Em Bento Rodrigues, não há sinal de que a vida possa renascer. Lama que varreu vilarejo do século 18 do mapa ainda está por todas as partes, e moradores parecem resignados com a reviravolta que o destino deu.

A família de Expedito Lucas da Silva busca alguma recordação nos escombros de sua casaFoto: DW/R. Malkes

Bento Rodrigues era um vilarejo do século 18. Por ali, passava a lendária Estrada Real que, na época da corrida pelo ouro, serviria para escoar o cobiçado metal de Minas Gerais. Com a descoberta de minérios, foi estabelecida a pequena comunidade: "O Bento", como é carinhosamente chamada, tinha apenas 600 habitantes espalhados em 200 casas e foi a comunidade mais afetada pelo rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco.

Desde o passado colonial, seus moradores se orgulham de resgatar as memórias antigas desse distrito, a 35 quilômetros de Mariana. Gostam de contar "causos". E, embora ainda estejam lidando com a dor de perder amigos queridos e ver tudo o que tinham ser engolido pela lama, uma nova história já é contada com entusiasmo nas rodas de conversa: a de Berenice.

Magrela e barulhenta, Berenice salvou 40 pessoas da morte quando a primeira camada de lama atingiu a comunidade, pouco depois das 16h do dia 5 de novembro. Ou quase. Berenice, na verdade, é uma motocicleta de 50 cilindradas, "uma cinquentinha". E a verdadeira heroína é sua dona, Paula Geralda Alves, de 36 anos, auxiliar de serviços gerais da Samarco. Quando soube do estouro da barragem, apavorada, Paula pegou a moto e saiu corajosamente gritando e buzinando pelas ruas, avisando aos moradores que uma onda de sujeira estava prestes a destruir a comunidade. "A barragem rompeu, a barragem rompeu", gritava entre as casas.

O combustível da motocicleta acabou. E Paula ainda ajudou a família e vizinhos a fugir na caçamba de um caminhão que, por sorte, passava por ali. Quando pensou em voltar para casa para pegar ao menos seus documentos, era tarde demais. Ela mesma perdeu tudo, até um de seus bens mais valiosos: um smartphone que havia acabado de comprar a prestações e nem sequer começou a pagar. Passou a noite no pasto, numa região mais alta, com outros moradores, à espera de socorro e sem saber se todos os seus familiares estavam bem.

Policial fecha o portão de acesso a Bento Rodrigues para impedir entrada de moradoresFoto: DW/R. Malkes

"Entrei em transe. Não pensava em nada. Só corri. Queria que todo mundo escapasse. Depois que deixei a moto no alto da colina e olhei para trás para ver se havia mais gente em Bento, me dei conta de que não havia mais Bento! Foi questão de dez minutos, e a cidade desapareceu. Tudo ficou marrom", relembra, ainda hospedada temporariamente em um hotel de Mariana, com o filho, os pais e uma irmã.

Acesso proibido a moradores

De acordo com a Defesa Civil, apenas 20 edificações ficaram de pé. E um laudo está sendo preparado para demolir o que restou tão logo seja possível. A força da enxurrada deixou um rastro de destruição impressionante. A lama ultrapassou dez metros de altura. Algumas casas foram completamente soterradas e, em uma delas, um automóvel foi arremessado contra o telhado. Poucas galinhas solitárias ciscam nas montanhas de escombros, e móveis, brinquedos, geladeiras e fotografias emergem em meio ao barro marrom-acinzentado, de consistência gelatinosa.

Testes feitos por especialistas asseguram que os rejeitos de minério de ferro não são tóxicos, mas até caminhar é perigoso: a lama, que parece seca em alguns pontos, ainda está úmida, fazendo afundar aqueles que ousam arriscar qualquer passo. Paula ainda não voltou lá. Tem o desejo, mas falta coragem para ver de perto seu pedaço de paraíso transformado em cidade-fantasma. Passados 30 dias da tragédia, ela se esforça para olhar para frente.

Paula, a heroína de Bento, com a moto Berenice, que a ajudou a salvar 40 pessoas: "Entrei em transe"Foto: DW/R. Malkes

"É muito triste tudo isso. A gente plantava couve, alface e um tomate-cereja delicioso que eu colhia para comer todos os dias. Era um vale lindo, mas eu sei que vou voltar. Eles vão ter de construir Bento 2. Nós não aceitamos ir para nenhum outro lugar, queremos continuar todos juntos na mesma vidinha de sempre. Não queremos mudar nada", diz ela, que recebeu uma promoção do chefe pelo ato de bravura.

O acesso a Bento Rodrigues foi fechado por medida de segurança. Na principal estrada que conecta ao povoado, foi colocado um portão controlado pela polícia. Mas há quem não aguente a proibição. Muitos moradores têm se arriscado e driblado a vigilância para chegar à região usando atalhos pelo mato em busca de algum objeto ou qualquer coisa que sirva de lembrança.

Outros, como o motorista e auxiliar de pedreiro Expedito Lucas da Silva, de 45 anos, aproveitam brechas durante as visitas de jornalistas para revirar os entulhos. Junto com a mulher Rosilene, de 38 anos, e a filha caçula, de 8, ele revirava o que era o quarto do casal. Encontrou apenas algumas roupas das crianças, uma caixinha com bijuterias e um álbum de fotografias enlameado.

Casa de Bento Rodrigues tem entrada bloqueada pela avalanche de lamaFoto: DW/R. Malkes

"Que sirva de exemplo"

Assim como outros sobreviventes, eles parecem resignados com a reviravolta que a vida deu. Não há sinal de revolta. Todos ali, de alguma forma, têm alguma relação de trabalho com a Samarco, seja como funcionários, prestadores ocasionais de serviço da mineradora ou mesmo de empresas terceirizadas.

E todos dizem que a companhia vai cumprir suas promessas. Uma das únicas queixas foi quanto à ausência de um plano de evacuação ou de uma sirene que pudesse ter avisado os moradores do perigo tão logo a barragem explodiu. Expedito, porém, enche os olhos de lágrimas toda vez que se lembra de um passado que agora parece distante. E quando se lembra da cachorrinha desaparecida na confusão da fuga.

"Tem umas coisas que a gente se apega, ? Minha cachorrinha vinha me fazer festa sempre que eu chegava em casa. Bento era bom demais. Estamos deprimidos porque roubaram nossa liberdade. Estou preso num quarto de hotel e não posso nem te oferecer um café", emociona-se. "Mas não vou reclamar não. Desculpa. Eu às vezes choro de tristeza, mas só posso agradecer a Deus pela vida. É uma bênção estar com a minha família inteira. Só quero que isso sirva de exemplo para a Samarco fazer as coisas com mais segurança. Agora vamos esperar nosso cantinho e tocar a vida. Preciso fazer uns bicos. Perdemos tudo, e eu ainda tenho de pagar 23 prestações de R450 reais de material de construção que tinha comprado para melhorar a casa."

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