Sátira e protesto na entrega do prêmio César de cinema
13 de março de 2021
Um ano após os distúrbios pela controversa premiação de Roman Polanski, o "Oscar francês" é novamente palco de protestos políticos, desta vez em torno do fechamento da cultura na pandemia, até com nudez e sangue.
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No momento em que deveria entregar o prêmio César de melhor figurino, a atriz Corinne Masiero aproveitou o palco da famosa sala de shows Olympia de Paris para um espetacular protesto: depois de entrar trajando uma Pele de Asno (alusão ao filme de 1970 estrelado por Catherine Deneuve), ela tirou o vestido encharcado de vermelho-sangue para apresentar, sobre o corpo totalmente nu, o slogan "Sem cultura, sem futuro".
Nas costas, ela trazia uma exigência ao primeiro-ministro da França, Jean Castex: "Nos dê arte, Jean!" Com a ação, Masiero quis expressar sua desaprovação aos meses de fechamento de instituições culturais como museus, teatros e cinemas, decretados pelo governo francês com o fim de conter a propagação do novo coronavírus.
"Obrigada pela receita, Madame Ministra"
O clima de crítica política marcou toda a cerimônia de entrega do prêmio nacional do cinema francês, na noite desta sexta-feira (12/03). Já em seu monólogo de abertura, a apresentadora Marina Foïs zombou impiedosamente da ministra da Cultura Roselyne Bachelot:
"Sejamos justos, o governo não está sem fazer nada, há as ajudas. E a ministra também não ficou sem fazer nada: Madame Bachelot, a senhora lança um livro – em venda antecipada na Amazon, 18 euros –, Ma vie en rose, onde dá uma receita de macarrão ao gorgonzola. A senhora tem realmente um jeitinho para encontrar consolo, para atravessar crises. Obrigada por isso."
Em seguida, Foïs comentou, resignada, em alusão às restrições ditadas pela pandemia: "Aquilo de que sentimos falta, nos une: as emoções que vivenciamos juntos." Mesmo sem público, os prêmios foram devidamente entregues na 46ª cerimônia do César. Na plateia estavam apenas os indicados nas diversas categorias.
"Adeus, seus babacas"
O troféu de melhor filme coube a Adieu les cons (literalmentre: Adeus, seus babacas), de Albert Dupontel. A tragicomédia conta a história de uma mulher gravemente doente, que aos 43 anos de idade sai em busca da filha que ela entregara para adoção quando tinha 15 anos, sob pressão dos pais.
Coronavírus dentro e fora das telas de cinema
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Dupontel, que não compareceu à entrega, também venceu na categoria de melhor direção. Adieu les cons foi lançado a França no fim de outubro, pouco antes do fechamento das salas de cultura, atraindo mais de 700 mil espectadores às salas de exibição em apenas dez dias.
Druk, do cineasta dinamarquês Thomas Vinterberg, foi escolhido como melhor filme estrangeiro. Estrelado por Mads Mikkelsen, ele enfoca um experimento com o consumo alcoólico iniciado por quatro professores amigos. O drama de sátira social também concorre ao Oscar de melhor longa-metragem internacional.
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Sombras do caso Polanski
A entrega do prêmio transcorreu em 2021 sob a nova direção da Academia do César. A polêmica do ano anterior sobre a escolha de J'accuse, de Roman Polanski, na categoria melhor direção precipitou a instituição numa crise. Sobre o diretor franco-polonês, que vive exilado nos Estados Unidos, pesam diversas acusaçãos de abuso sexual e de estupro de uma menina de 13 anos.
Diante do local da cerimônia realizaram-se manifestações, em parte violentas, que a polícia dissipou com gás lacrimogênio. Diversos profissionais deixaram o evento em protesto, e em consequência toda a diretoria da Academia do César renunciou.
Designado por alguns "o Oscar da França", o prêmio de cinema nomeado em homenagem ao escultor César Baldaccini é concedido desde 1976.
av (AFP,DPA,ots)
Godard, o anticineasta
Como um dos diretores mais radicais da nouvelle vague, Jean-Luc Godard revolucionou o cinema europeu a partir dos ano 1960. Capaz até de esnobar o Oscar, ele tem seu lugar na história da sétima arte assegurado.
Foto: Christof Schuerpf/dpa/picture alliance
"Acossado" (1960)
Nascido em Paris em 3/12/1930, Jean-Luc Godard ganhou fama mundial logo com seu primeiro longa-metragem: "Acossado", estrelado por Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg. Veloz e anticonvencional, o filme de gângster fez sensação ao estrear no Festival de Cannes, consagrando o diretor como expoente da "nouvelle vague" (nova onda) da França.
Foto: Kinowelt/Arthaus
Astro do Festival de Berlim
Em 1961, o cineasta francês foi convidado para o Festival de Berlim: "Acossado" havia "se chocado como um punho" na história do cinema, escrevia uma revista especializada na época. Ele foi acompanhado pela esposa, Anna Karina. No entanto não durou muito o casamento com a atriz dinamarquesa, que estrelaria vários de seus filmes: em 1964 o casal se separaria.
Foto: Keystone/Hulton Archive/Getty Images
"O desprezo" (1963)
Reflexão e autocrítica foram companheiras constantes do cineasta que se mudou em 1953 para a Suíça. Para o jovem Godard, a confrontação intelectual com a política e a sociedade eram parte de seu trabalho. Com Brigitte Bardot e Michel Piccoli realizou "O desprezo", um filme sobre fazer filmes, tendo o mestre do cinema alemão Fritz Lang num papel secundário.
Foto: United Archives/picture alliance
"Bando à parte" (1964)
Ao mesmo tempo musa e contraparte, a (ex-) esposa de Godard Anna Karina participou de várias de suas produções. Nos anos 60 era sua atriz favorita também por encarnar um tipo de mulher moderna, emancipada, antes inusual no cinema francês da época. Porém no set de filmagem ambos se entendiam melhor do que na vida privada.
Foto: United Archives/picture alliance
"Alphaville" (1965)
O cineasta ampliou ainda mais os limites de uma linguagem visual inovadora numa visionária ficção científica sobre a luta entre o ser humano e os sistemas de computador. Com Eddie Constantine (dir.) no papel do detetive particular Lemmy Caution, Godard rodou "Alphaville" no mundo futurista das fachadas de vidro e concreto dos subúrbios parisienses.
Foto: akg-images/picture-alliance
"Made in USA" (1966)
Mesmo depois de separados e de Godard já ter tornado pública sua relação com outra mulher, Karina continuou atuando em suas produções. "Made in USA" se passa na França, mas a cidade que a atriz dinamarquesa visita traz o nome da metrópole americana Atlantic City. Godard dedicou o filme a Samuel Fuller (1912-1997), diretor americano cultuado por ele.
Foto: Everett Collection/picture alliance
"Sympathy for The Devil" (1968)
Godard foi sempre um pioneiro: inovador, radical de esquerda, político. Desinteressado por convenções, ignorou prêmios e honrarias. Como cineasta, extrapolou os limites usuais da produção cinematográfica, abrindo até mão de um roteiro. Numa linguagem imagística totalmente nova, em 1968 arriscou-se num novo gênero: um documentário sobre a banda Rolling Stones.
Foto: picture-alliance/Everett Collection
"Salve-se quem puder (a vida)" (1980)
Após um acidente de trânsito em 1971, Jean-Luc Godard se retirou à cidade francesa Grenoble, para depois isolar-se num vilarejo suíço. Só em 1980 retomou a atividade de diretor. Com tomadas ousadas e Isabelle Huppert no papel principal, causou sensação com "Salve-se quem puder (a vida)". "Meu segundo primeiro filme", comentaria mais tarde.
Foto: Everett Collection/picture alliance
"Nouvelle vague" (1989)
Godard assegurou seu lugar na história do cinema como revolucionário intelectual, sempre elucubrando e na eterna busca do mistério da arte. Em "Nouvelle vague", entregou a Alain Delon o papel do pensador, com uma boa dose de citações, de Aristóteles a Franz Kafka.
Foto: United Archives/picture alliance
"Godard, Truffaut e a nouvelle vague"
De início, Godard e Francois Truffaut (dir.) eram grandes amigos, colegas e companheiros de batalhas artísticas – até as revoltas estudantis de maio de 1968. E a discussão em torno do filme de Truffaut "A noite americana" (1973) foi a gota d'água. No documentário "Godard, Truffaut e a nouvelle vague" (2010) Emmanuel Laurent, conta sobre a ruptura radical dos dois ícones do novo cinema francês.
Foto: Studiocanal/Arthaus
Esnobando o Oscar
Sem a linguagem visual radical e as técnicas de corte inovadoras de Godard, como os jumpcuts, cineastas como o alemão Rainer Werner Fassbinder seriam impensáveis. Muitos o copiaram, cultuaram como mestre da arte de ver. Mas o francês é também um rabugento implacável: até mesmo o Oscar pelo conjunto de sua obra, em 2010, ele se recusou a receber em pessoa. Agora o revolucionário faz 90 anos.