São Paulo entre hospitais sem leitos e cemitérios lotados
2 de abril de 2021No cemitério Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, os enterros de adultos estão suspensos. Com 28 mil sepulturas, o segundo maior cemitério da cidade mais populosa do país não tem mais espaço para abrigar os corpos que chegam ao local, a maioria vítima da covid-19. O serviço segue disponível apenas para jazigos já reservados e nas quadras destinadas a crianças.
Desde a última quarta-feira (31/03), funcionários do serviço funerário trabalham para liberar sepulturas: ossadas de pessoas enterradas ali há mais de três anos estão sendo retiradas das covas, exumadas e depositadas num ossário.
A interrupção ocorreu apenas um dia depois de o Vila Nova Cachoeirinha passar a realizar enterros noturnos. A extensão do horário foi a saída para abrigar as vítimas da pandemia no mês em que mais de 3.500 mortes foram registradas só na capital paulista. Em todo o estado, os mais de 15 mil óbitos em março levaram os números da doença a um patamar recorde.
Com uma jornada estendida, alguns servidores do cemitério relatam exaustão e tristeza profunda com a morte de colegas para a covid-19. "É um trabalho pesado, os funcionários estão muito angustiados. As máquinas abrem as covas, mas eles têm que ajeitar tudo. Eles têm visto famílias inteiras sendo enterradas", diz João Gomes, do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep), sobre o cotidiano dos agentes de sepultamento, ou coveiros.
Questionada sobre o Vila Nova Cachoeirinha e a falta de espaço para enterrar os mortos, a prefeitura afirmou que nenhum outro cemitério estaria próximo do esgotamento. Dias antes, o número de sepultamentos na cidade havia batido um novo recorde, 419.
O órgão respondeu por meio de nota que "as exumações fazem parte de um procedimento comum de todos os cemitérios municipais, e cada unidade segue um cronograma".
Em todo o país, o último dia de março somou 3.869 mortes ligadas à covid-19, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) – o número mais alto já registrado em apenas um dia no país. Desde o início da pandemia, 325.284 brasileiros perderam suas vidas.
Previsão pessimista
No estado de São Paulo, o mês de abril começa com um cenário pouco animador. Há preocupação com escassez de oxigênio em algumas cidades e, na capital, mais de 700 pacientes em situação grave aguardam na fila de espera por um leito de UTI.
Além do ritmo lento na vacinação, uma nova variante foi confirmada no interior paulista. Embora seja muito semelhante à cepa da África do Sul, é possível que se trate de uma mutação fruto da evolução do vírus que se multiplica no Brasil.
A sobrecarga no sistema de saúde não deve ser aliviada, prevê o matemático Osmar Neto, autor de um estudo recente sobre o tema publicado na revista científica Nature.
As projeções do modelo matemático desenvolvido por Neto apontam que serão necessários 14.150 leitos de UTI em abril. Por outro lado, o estado tem 12.630 vagas atualmente. A conta, portanto, não fecha: seriam necessários mais 1.520 novos leitos, número bem acima dos 167 extras que o estado disse que disponibilizaria.
"O modelo também aponta para um pico de 500 mortes diárias no final de abril na média móvel no estado de São Paulo", adiciona Neto.
Para Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), trata-se de uma tragédia anunciada. "É uma situação prevista desde o ano passado. Quando começou a haver uma redução de casos e mortes, no final de agosto, houve redução das medidas de isolamento e a consequência são esses números de março", adiciona.
O acompanhamento feito por Lotufo aponta para um aumento de casos nas próximas duas semanas, mas numa velocidade menor.
As restrições mais rígidas da fase emergencial no estado seguem até 11 de abril. O comércio de rua está fechado com o objetivo de frear o número de novos casos, internações e mortes pelo coronavírus.
Evolução da epidemia no Brasil
Em todo o país, segundo previsões de Osmar Neto, a média móvel de mortes diárias em abril pode ser de 2.900, com um total de óbitos de 640 mil até o fim de outubro. Para chegar a esse número, 40 mil cenários foram rodados no computador.
"No nosso modelo matemático usado para fazer as estimativas, nós incluímos a preocupação das pessoas [em relação à covid-19], que é um fator decisivo", explica Neto. "Normalmente, quando há mais mortes acontecendo, as pessoas se preocupam mais. Quando esse número cai, elas relaxam. E a tendência é que, com o passar do tempo, elas vão ficando com menos paciência para manter os cuidados", detalha.
Segundo o pesquisador, as equações levam em conta variáveis consideradas inovadoras, como o número de pessoas que não circulam, que estão em casa. Esses dados de mobilidade foram possíveis graças a informações de celulares disponibilizadas pela Apple e Google.
"Na ciência, usamos ferramentas e métodos para não deixar que o que acreditamos e queremos interfira nos dados. Sobre essas previsões que estou fazendo, a minha vontade é que dê errado. Mas esses são os números", admite Neto.
"Colocar essas projeções serve como alerta para que as pessoas e os governos tomem os cuidados para frear a pandemia", defende. Ainda segundo o modelo do matemático, a aplicação da vacina em metade da população poderia evitar a morte de 150 mil brasileiros até o fim de outubro.
Para o pesquisador Paulo Lotufo, além da garantia dos imunizantes, a postura responsável das autoridades também é importante para evitar mortes. "O comportamento das pessoas é muito de acordo com as lideranças. E o que temos é uma liderança negacionista, jogando contra. No governo federal e em alguns estaduais e municipais também", comenta ele sobre o presidente Jair Bolsonaro, que desde o início da pandemia desencoraja o uso de máscaras e medidas de isolamento social.