1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW

São Paulo Fashion Week tem paridade racial inédita

8 de novembro de 2020

Exigência de que 50% dos modelos fossem negros ou indígenas é pioneira em nível internacional. Em meio a denúncias de racismo e contestação de padrões estéticos no mundo da moda, medida sinaliza cenário mais plural.

A modelo Lidyane Carvalho entre outras duas modelos no desfile da Angela Brito na SPFW 2019
"A maioria das grandes marcas brasileiras parece não gostar do Brasil, não o retrata no desfile", diz estilista Isaac SilvaFoto: Cai Ramalho

Chega ao fim neste domingo (08/11) a 25ª edição da São Paulo Fashion Week (SPFW), realizada virtualmente devido à pandemia. A ausência de público não foi o único fato inédito do maior evento de moda da América Latina em 2020. Pela primeira vez, a SPFW exigiu que 50% dos modelos sejam negros, afrodescendentes ou indígenas.

O anúncio foi feito na semana anterior ao evento e chamou atenção pelo pioneirismo em nível internacional. Em 2018, apenas 280 dos 976 looks desfilados na semana da moda em São Paulo foram vestidos por negros e afrodescendentes – 28% do total.

Esse percentual cairia para pouco mais de 10%, não fossem as dez estreias de marcas independentes, a maioria sem loja física, e as homenagens de pequenas grifes à comunidade negra.

A adoção de cotas raciais pela SPFW resultou da mobilização organizada pelo coletivo de modelos Pretos na Moda. O grupo se formou em junho deste ano, quando as redes sociais foram palco para denúncias de racismo e abuso moral cometidos por estilistas.

Veterana da semana de moda em São Paulo, a estilista Gloria Coelho fez mea culpa em entrevista à revista Elle, na ocasião. "O eurocentrismo cultural da sociedade brasileira formata uma certa narrativa branca. Eu compactuei com isso, sem nem perceber meus vieses inconscientes. Essas meninas estão certas, nossa sociedade precisa evoluir", afirmou.

Em 30 de outubro, o coletivo divulgou um tratado moral em parceria com a organização da SPFW e profissionais da área, no qual apresentou o objetivo de "viabilizar a inclusão de profissionais racializados na indústria da moda brasileira".

O documento também estipula valores mínimos de cachês para as apresentações, prazos de pagamento e diretrizes de comportamento e respeito no trabalho. "O tratado será renovado e ajustado a cada temporada tendo em vista que o mercado precisa se renovar a cada temporada", escreveu o coletivo nas redes sociais.

Integrante do Pretos na Moda, a modelo Lidyane Carvalho, de 29 anos, explica que a iniciativa resgatou uma mobilização iniciada ainda no ano passado, quando o modelo de 25 anos Tales Soares morreu após desmaiar na passarela da SPFW. A pouca atenção que o acidente recebeu da organização do evento levou o grupo a questionar o tratamento recebido pelos profissionais da moda.

"Na reunião que tivemos com o Paulo Borges [idealizador e diretor criativo da SPFW] para trazer nossas reivindicações, algumas modelos choraram ao falar sobre como somos tratadas feito cabides: com fome, em pé por horas a fio, como se fôssemos produtos, literalmente", afirma.

A questão racial, porém, foi o tema principal nas conversas mantidas pelo grupo com a organização do evento sobre as dificuldades enfrentadas no mundo da moda. Além da baixa representatividade nas passarelas, o coletivo traz à tona outras questões que afetam especificamente modelos negros.

No caso dos homens, a hiperssexualização dos corpos é uma das tendências criticadas pelo coletivo, uma vez que os convites para trabalhos se concentram em coleções do "tipo praia" e marcas de cuecas.

As mulheres, por sua vez, queixam-se da falta de preparo dos maquiadores e cabeleireiros contratados pelas marcas para lidar com as tonalidades e penteados afro-brasileiros.

"Ainda há muito o que lutar, mas a adoção de cotas pela SPFW representa um marco histórico. É o começo de uma revolução no mundo da moda", afirma a modelo.

Efervescência negra na SPFW

A exigência de paridade racial na formação dos castings de modelos se insere numa contestação global à uniformização de padrões estéticos observada na indústria da moda ao longo de décadas, seja de beleza, gênero ou cor.

São justamente esses os alvos do trabalho ativista de Isaac Silva, estilista baiano de 30 anos que impactou o público com seu desfile de estreia na edição da SPFW no ano passado, com um casting formado quase integralmente por negros.

A coleção "Acredite no Seu Axé" apresentou elementos estéticos das culturas e religiões afro-brasileiras, e Isaac preparou pessoalmente a passarela com arruda e sal grosso.

"A maioria das grandes marcas brasileiras parece não gostar do Brasil, não o retrata no desfile. Eu trouxe essa moda ativista, falando de padrões de beleza, gênero e cor. A moda comunica, eu conto uma história na passarela. E faço isso com brasilidade", afirma Isaac à DW Brasil.

O desfile marcou a edição de estreia de Lidyane Carvalho na SPFW. Ela acredita que a opção do estilista por um casting negro foi determinante para que as portas da semana de moda se abrissem para ela.

"Quando os estilistas pegam os pacotes prontos de modelos oferecidos pelas agências, há uma minoria ínfima de negros na seleção. E acabam enviando os modelos que mais desfilaram, que as marcas mais gostam. Normalmente, brancos", fala Lidyane.

"Ainda há muito o que lutar, mas a adoção de cotas pela SPFW representa um marco histórico", diz a modelo Lidyane CarvalhoFoto: Cai Ramalho

Na edição deste ano, o baiano foi escalado para a noite de encerramento do evento, a mais esperada pelo público. A coletânea "Jacira, Flores para Iemanjá" homenageia uma tia-avó, matriarca da família, responsável por lhe apresentar à entidade que é tida como a rainha dos mares na religiosidade afro-brasileira.

"Não tem como falar de religiões afro sem falar de natureza. Fizemos tudo com o maior cuidado possível, e procuramos usar tecidos sustentáveis", conta o estilista.

Isaac faz questão de reverenciar os trabalhos de Goya Lopes, Carol Barreto e Luiz de Freitas, estilistas negros que abriram caminho para o seu sucesso. O baiano diz querer resgatar a representatividade de suas referências.

O estilista, que sempre utilizou um casting predominantemente negro, aprova a decisão do evento de exigir paridade racial na escolha dos modelos pelas marcas.

"Uma ação como esta é de afirmação positiva, para dizer: olha, gente, o caminho é este, sem voltas. As marcas que não dialogarem com o mundo real vão acabar. Se as pessoas não se veem na roupa, não compram. A moda ainda é um ambiente racista", afirma.

Falta de oportunidades

Quando montou o elenco de modelos do ano passado, o baiano radicado em São Paulo contou com o apoio do projeto Periferia Inventando Moda (PIM), dedicado a divulgar profissionais e coletivos de moda da periferia de São Paulo, criado pelo estilista Alex Santos.

Um dos nomes selecionados do PIM foi a modelo Cris Marques. Aos 34 anos, ela já tinha perdido as esperanças de desfilar na SPFW por considerar sua idade avançada para estrear no evento. A ocasião se tornou ainda mais especial pela oportunidade de trabalhar com um ídolo.

"Foi gratificante demais para mim desfilar para o Isaac. Ele busca mostrar um pouco da história do negro, nossa ancestralidade, nossas raízes. Contribuir por meio do meu trabalho foi uma honra. Fico emocionada só de lembrar", lembra a modelo.

Mesmo trabalhando com moda desde os 17 anos, Cris só entrou pela primeira vez na SPFW depois dos 30, quando cursava faculdade de Design de Moda. Como outros estudantes, ela foi para a porta do evento implorar por um convite, com sucesso.

"Eu parecia uma criança que você solta no parque de diversões", recorda. Ciente do valor de uma oportunidade, ela diz que o anúncio de cotas raciais tem gosto de vitória.

"Foram muitos anos vendo muita coisa acontecendo na área da moda. Foi muita luta chegar até aqui. Tem tanto talento, tanta gente maravilhosa na área há anos. Se a gente abre oportunidades e tem união, o trabalho de todo mundo cresce junto e tem muito mais força", defende a modelo.

Mesmo trabalhando com moda desde os 17, Cris Marques só entrou pela primeira vez na SPFW depois dos 30Foto: Gabriel

Histórico negativo da SPFW

Cris acredita que as conquistas no sentido de maior igualdade venham se acumulando na indústria da moda ao longo dos últimos anos. Ela cita como um marco o desfile do selo Lab Fantasma, criado pelo rapper Emicida com seu irmão Evandro Fióti, que gerou grande repercussão em 2017.

Na ocasião, Fióti denunciou um episódio de racismo. "Ser preto é ser barrado pelo segurança do evento até mesmo quando é da sua marca e com pulseira", escreveu nas redes sociais à época.

A São Paulo Fashion Week já foi alvo de ações judiciais no passado devido à ausência de modelos negros em suas passarelas. Em 2009, um acordo entre o Ministério Público e a semana de moda determinou um sistema de cotas nos desfiles: ao menos 20% dos profissionais deviam ser negros.

Ao longo dos anos seguintes, a porcentagem se manteve acima do limite estabelecido com consideráveis variações entre uma temporada e outra.

A maioria das grifes tradicionais não irá participar da edição virtual deste ano, dominada por marcas jovens, com maior preocupação sobre a representatividade. Resta a expectativa sobre o ano que vem.