No Brasil, o livro didático é o principal, quando não o único livro ao qual a maior parte das crianças tem acesso. Essa é uma realidade amplamente conhecida e estudada. De tal modo que o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), promovido pelo Ministério da Educação (MEC), é uma política pública de alcance material e simbólico absurdamente significativo. Nos rincões e regiões periféricas do Brasil, onde água encanada ainda é artigo de luxo, o livro é um objeto tão valioso que pode não ter sentido algum.
O PNLD funciona tendo as secretarias estaduais de educação como pontes, por meio das quais professores e educadores de escolas públicas adotam livros do catálogo do programa. Pois bem, nesta semana o governo do estado de São Paulo decidiu recusar os livros oferecidos pelo MEC.
O argumento oferecido pelo secretário da educação é que o estado de São Paulo deseja abolir o uso de material impresso, substituindo-o pelo conteúdo digital. Em que pese o fato de São Paulo ser o estado mais rico da nação, as experiências mais recentes de ensino remoto durante a pandemia atestaram que as escolas públicas do estado não têm condições materiais para um ensino embasado em plataformas digitais.
Faltam computadores e redes cabeadas nas escolas. Falta formação para os professores que precisam se "adaptar" às ferramentas digitais. Além disso, a imensa maioria dos estudantes não teria meios de acessar esses conteúdos fora do espaço escolar, porque não tem notebooks, chromebooks ou até mesmo rede Wi-Fi para acessar esses conteúdos.
Desse modo, a pretensa ousadia digital da secretaria do estado de São Paulo em "modernizar" a educação das escolas, abrindo mão dos livros didáticos antes mesmo de ter meios para garantir o acesso às plataformas digitais para os estudantes e professores da rede, nada mais é do que a "boa" e velha política de precarização do ensino público. Uma política que há décadas vem transformando a educação pública num grande esquema de reprodução acrítica de conteúdos e informações, além de uma máquina de moer professores e educadores.
E como não acredito em coincidências, não posso deixar de fazer a leitura conjunta dessa medida com as recentes ações da Polícia Militar de São Paulo na cidade do Guarujá. Uma das ações mais letais da história da corporação e que foi comemorada pelo governador do estado.
O que me deixa impressionada é que não há novidade alguma nessa conjunção.
O sucateamento da educação e a ação violenta dos órgãos de repressão funcionam, há décadas, como uma espécie de fórmula eficaz da manutenção e perpetuação do racismo à brasileira. São as faces da mesma moeda.
De um lado, dificultam ao máximo que a juventude pobre e negra (na sua maioria) tenha acesso a uma educação básica de qualidade. E educação de qualidade invariavelmente é sinônimo de uma educação transformadora. Por outro, as ações violentas do braço armado do Estado seguem violando os direitos civis da mesma população pobre e negra – que, por conta da estrutura racista que nos ordena, não teve e nem terá chances de "subir na vida" –, deixando bem claro quais são as regras do jogo.
Essa é uma receita que só faz o racismo crescer.
Até quando?
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.