Dois afegãos que colaboraram com as Forças Armadas alemãs escaparam do país antes da tomada do poder pelo Talibã. Refugiados em Berlim, eles temem pela vida dos familiares que ficaram para trás e pelo próprio futuro.
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Nabi* e Sultan* já haviam decidido deixar o Afeganistão em 2020. Os dois amigos vinham trabalhando para o governo da Alemanha há um bom tempo, quando os combates chegaram perto demais.
"As províncias do norte do país estavam ficando cada dia piores", conta Sultan, de 37 anos, que nos últimos dois anos e meio foi motorista de segurança num consulado alemão. "Nós sabíamos que, se as tropas internacionais estavam indo embora, íamos ser mortos pelos talibãs."
"Eu perdi meu lar, perdi amigos, perdi minha família... eu estou aqui", comenta Nabi, de 38 anos. Desde 2003, ele vinha atuando como tradutor-intérprete entre as forças afegãs e as de diversos países da Otan. "Minha mente, meu cérebro, meu coração, meu tudo está lá na minha terra, porque a minha família está em perigo profundo, os talibãs estão procurando por eles agora. Estamos muito preocupados, não dormimos à noite."
Após vários meses de purgatório burocrático, já que os passaportes para sua esposa e seis filhos tinham que ser expedidos por Cabul, e após conseguir tomar emprestado com amigos os 7 mil dólares necessários à viagem, em meados de julho deste ano Naibi e a família voaram para Berlim. Sultan, que chegou alguns dias antes, trouxe a esposa e dois filhos. E não foi sem tempo: algumas semanas mais tarde, o Estado afegão que ambos haviam conhecido e servido desaparecera.
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O que é núcleo familiar?
Assim como outros colaboradores de apoio que conseguiram escapar para a Alemanha nas últimas semanas, ninguém foi esperá-los no aeroporto: tudo o que Nabi tinha era um e-mail com instruções para ir de táxi até um lar de refugiados específico em Berlim.
Mas nem todos os seus familiares puderam vir com eles: as autoridades alemãs só fornecem vistos ao que denominam núcleo familiar, o que, do ponto de vista dos dois afegãos, é um caso de incompatibilidade cultural. "Acho que para os ocidentais, o núcleo familiar é só o próprio homem, sua mulher e os filhos, mas para nós, o núcleo é nossa grande família, nosso pai, irmão, todo mundo."
É também improvável que o Talibã vá fazer essa distinção que o governo alemão faz, e Nabi e Sultan não se fiam nas assertivas de que não haverá represália. "Entre os afegãos, 95% não gostam dos talibãs, mas têm medo da crueldade e barbaridade deles", afirma Nabi. "Não é gente em que se possa confiar. O que eles dizem e o que fazem são coisas completamente diferentes."
Agora, os dois ex-colaboradores estão a milhares de quilômetros de distância, sentados no salão comunitário de um antigo conjunto residencial um tanto dilapidado, no sul da capital alemã, que abriga cerca de 700 refugiados, a maioria sírios e afegãos.
Teoricamente, trata-se de um alojamento temporário, mas – com a burocracia berlinense sendo notoriamente lenta e seu mercado imobiliário, infernal – ninguém fica aqui menos de quatro meses, e muitas famílias maiores chegam a permanecer por anos.
Tudo o que Nabi e Sultan podem fazer é observar no noticiário a desgraça de seu país, aterrorizados por seus pais e irmãos, tendo como distração ocasional os diversos compromissos burocráticos que têm a cumprir.
Empenho mal reconhecido
Nabi está também surpreso pelo pouco esforço do governo alemão em reconhecer os seus serviços, frustrado por ser tratado simplesmente como qualquer outro fugitivo de guerra. "Nós arriscamos nossas vidas, arriscamos tudo lá, deixamos tudo lá. As Forças Armadas alemãs deveriam pelo meno reconhecer a nossa ajuda, nosso apoio. Eles deveriam nos dar moradia permanente em algum lugar."
Nesse meio tempo, a situação vai se deteriorando no país natal. "Meus amigos já estão pedindo para eu devolver o dinheiro que me emprestaram", diz Nabi. "Porque, sabe, sob o controle do Talibã não têm trabalho, não têm negócios, não têm nada para alimentar suas famílias."
Mas ele não pode devolver nada, pois não tem permissão para trabalhar. O pessoal de apoio afegão tem direito a receber tanto um visto de residência de três anos quanto de trabalho na Alemanha, já que suas atividades teriam servido a defender os interesses políticos nacionais. Contudo aqui as coisas não acontecem tão rápido assim.
Acima de tudo, os dois homens não conseguem acreditar no que aconteceu a seu país: eles não esperavam um colapso total das forças militares afegãs. "Estávamos mais preocupados com a guerra civil que se seguiria", revela Nabi. "Não se pensava que o governo todo ia cair em um ou dois dias."
Para eles, a retirada das tropas ocidentais também foi rápida demais. "Os exércitos internacionais iam se retirar algum dia, eles não podiam estar lá para sempre", reconhece Sultan. "Mas não achamos que fosse o momento de eles deixarem o Afeganistão. Eles podiam ter ficado mais tempo, para estabilizar o país e o governo."
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* Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados para proteger suas famílias.
A intervenção dos EUA no Afeganistão
Há 20 anos, após o 11 de Setembro, os EUA enviavam seus primeiros soldados ao país. Reveja os principais acontecimentos desde então: da operação Liberdade Duradoura à retomada do país pelos fundamentalistas do Talibã.
Foto: Evan Vucci/AP Photo/picture alliance
Operação Liberdade Duradoura
Em outubro de 2001, menos de um mês após aos ataques de 11 de Setembro, o presidente George W. Bush lança no Afeganistão a operação Liberdade Duradoura, depois que o regime Talibã se recusa a entregar Osama bin Laden. Em semanas, os americanos derrubam o Talibã, que ocupava o poder desde 1996. Cerca de mil soldados são enviados ao país em novembro, aumentando para 10 mil um ano depois.
Foto: picture-alliance/DoD/Newscom/US Army Photo
Talibã se reagrupa
A invasão do Iraque em 2003 se torna a maior preocupação dos EUA e desvia a atenção do Afeganistão. O Talibã e outros grupos islamistas se reagrupam em seus redutos no sul e leste do Afeganistão. Em 2008, Bush concorda em enviar soldados adicionais ao país em meio a pedidos por uma estratégia efetiva contra o Talibã. Em meados de 2008, há 48.500 soldados americanos no país.
Foto: picture alliance/Photoshot
Obama é eleito
Em sua campanha, Barack Obama promete encerrar as guerras no Iraque e no Afeganistão. Mas nos primeiros meses de sua presidência, em 2009, há um aumento no número de soldados no Afeganistão para cerca de 68 mil. Em dezembro, o número cresce ainda mais, para 100 mil, com o objetivo de conter o Talibã e fortalecer instituições afegãs.
Foto: AP
Morte de Bin Laden
Osama bin Laden, líder da Al Qaeda que esteve por trás dos ataques de 11 de Setembro, é morto em maio de 2011 em seu esconderijo, durante uma operação de forças especiais americanas no Paquistão.
Foto: picture-alliance/dpa
Acordo com Afeganistão
O Afeganistão assina em setembro de 2014 um acordo bilateral de segurança com os EUA e texto similar com a Otan: 12.500 soldados estrangeiros, dos quais 9.800 norte-americanos, permaneceriam no país em 2015. Mas a situação de segurança piora. Em meio à ressurgência do Talibã, Obama diminui a velocidade de retirada em 2016, afirmando que 8.400 soldados permaneceriam no Afeganistão.
Foto: Reuters
Bombardeio de hospital em Kunduz
Em outubro de 2015, no auge do combate entre insurgentes islâmicos e o Exército afegão, apoiado por forças da Otan, um ataque aéreo dos EUA atinge um hospital dirigido pela organização Médicos Sem Fronteiras na província de Kunduz. O ataque deixa 42 mortos, inclusive 24 pacientes e 14 membros da ONG.
Foto: Getty Images/AFP
"Mãe de todas as bombas"
Em abril de 2017, forças americanas atingem posições do "Estado Islâmico" (EI) no Afeganistão com a maior bomba não nuclear já usada pelo país em combate, matando 96 jihadistas. Em julho, é morto o novo líder do EI no país.
Foto: Reuters/U.S. Department of Defense
"Estamos diante de um impasse"
Em fevereiro de 2017, um relatório do governo dos EUA mostra que as perdas entre as forças de segurança afegãs subiram 35% em 2016 em relação ao ano anterior. Pouco depois, o general americano à frente das forças da Otan, John Nicholson (esq., ao lado do secretário da Defesa John Mattis), alerta que precisa de mais milhares de soldados: “Acredito que estamos diante de um impasse."
Foto: Reuters/J. Ernst
Trump anuncia nova estratégia
Em 21 de agosto de 2017, o presidente Donald Trump anuncia nova estratégia para o Afeganistão, fazendo da caça a terroristas a principal prioridade. Trump não especifica um aumento do número de soldados como esperado, mas diz que os objetivos incluem "obliterar" o Estado Islâmico, "esmagar" a Al Qaeda e impedir o Talibã de dominar o Afeganistão.
Foto: picture-alliance/Pool via CNP/MediaPunch/M. Wilson
EUA negociam com rebeldes
Em julho de 2018, sob o governo do presidente Donald Trump, os EUA entram em negociação com o Talibã, sem envolver o governo afegão eleito ou os parceiros da Otan.
Foto: picture-alliance/dpa/AP Photo/Qatar Ministry of Foreign Affairs
Trump cancela encontro com Talibã
Em setembro de 2019, o presidente Trump cancela na última hora uma reunião marcada em sigilo com líderes do Talibã e do Afeganistão, após o grupo islamista assumir a autoria de um ataque em Cabul que matou um soldado americano e outras 11 pessoas.
Foto: Getty Images/M. Wilson
EUA e Talibã assinam acordo de paz
Em fevereiro de 2020, sob o regime Trump, os governos dos EUA e do Afeganistão anunciam a retirada completa das tropas americanas e de outros países da Otan. O pacto assinado pelo negociador especial dos EUA para a paz, Zalmay Khalilzad, e pelo líder político talibã mulá Abdul Ghani Baradar, prevê que o número de militares estrangeiros seria reduzido gradualmente, ao longo de 14 meses.
Foto: AFP/G. Cacace
Biden anuncia retirada total das tropas
Em 14 de abril de 2021, o presidente Joe Biden comunica à população americana que a guerra mais longa do país terá fim, com as tropas dos EUA e da Otan se retirando inteiramente do Afeganistão até 11 de setembro, 20º aniversário dos ataques terroristas em Nova York.
Foto: Andrew Harnik/AFP/Getty Images
EUA e Otan iniciam retirada
EUA e Otan iniciam formalmente, em 1º de maio de 2021, a retirada de todas as suas tropas do Afeganistão. A previsão era retirar até 11 de setembro entre 2.500 e 3.500 soldados americanos e cerca de outros 7 mil soldados da Otan. Estima-se que os EUA tenham gasto mais de 2 trilhões de dólares no país, em 20 anos, de acordo com o projeto Costs of War da Universidade Brown.
Foto: Michael Kappeler/dpa/picture alliance
Americanos entregam base ao governo afegão
Em 2 de julho de 2021, tropas dos EUA partem da base aérea de Bagram, ponto focal da guerra, e entregam o local ao governo afegão. Permanecem no país asiático alguns poucos soldados, numa pequena base na capital Cabul.
Foto: Rahmat Gul/AP/picture alliance
Talibã toma capitais regionais
Aproveitando o vácuo deixado pela retirada das tropas de paz internacionais do Afeganistão, guerrilheiros do Talibã tomam, no inicio de agosto de 2021, capitais regionais como Sheberghan, Kunduz e Zaranj, num duro golpe para o governo afegão, que lutava para defender as cidades mais importantes da ofensiva do grupo extremista.
Foto: Abdullah Sahil/AP Photo/picture alliance
EUA retiram seus cidadãos do Afeganistão
Em meados de agosto, Estados Unidos e outros países começam a retirar seus cidadãos do Afeganistão, enquanto forças militares americanas se esforçam para proteger e manter funcionando o aeroporto de Cabul. Com todos os voos comerciais cancelados, milhares de afegãos invadem a pista do aeroporto desesperados, tentando embarcar em qualquer aeronave que fosse decolar.
Foto: Wakil Kohsar/AFP
Talibã ocupa palácio presidencial
O Talibã toma a capital Cabul, em 15 de agosto de 2021, dissolvendo o governo e estendendo seu controle sobre todo o Afeganistão. A capital era um dos últimos redutos ainda sob a autoridade do presidente Ashraf Ghani. Assim como ocorreu com dezenas de outras cidades, ele é tomada sem resistência efetiva das tropas governamentais. Ghani foge do país.
Foto: Zabi Karim/AP/picture alliance
Biden defende retirada das tropas
Um dia depois da tomada de Cabul, o presidente dos EUA, Joe Biden, defende a decisão de pôr fim à presença americana no Afeganistão e condena líderes e políticos afegãos que abandonaram o país, abrindo caminho para a tomada de poder pelo Talibã. Biden culpa ainda o ex-presidente Donald Trump, por ter fortalecido o grupo rebeldes e deixado os talibãs em sua melhor situação militar desde 2001.