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Sarcástico, irônico, reacionário: os cem anos de Nelson Rodrigues

23 de agosto de 2012

Tradutor diz que recepção de Nelson Rodrigues na Alemanha foi prejudicada pelo pouco interesse por literatura latino-americana após a queda do Muro. Mas isso pode mudar: "autores politicamente incorretos são atraentes".

Foto: Editora Nova Fronteira

O maior dramaturgo brasileiro e um dos mais brilhantes e influentes escritores do país, Nelson Rodrigues completaria 100 anos no dia 23 de agosto. Na Alemanha, é um ilustre desconhecido, embora a grande maioria de seus dramas teatrais já tenha sido vertida para o alemão.

O responsável pelas traduções é Henry Thorau, professor de literatura da Universidade de Trier. Especialista em teatro e literatura brasileira, ele traduziu 12 das 14 peças do brasileiro, além de ter editado um volume de crônicas esportivas do autor, lançado durante a Copa de 2006. Para 2013, planeja a publicação no país de uma antologia com textos da série de crônicas A vida como ela é.

Em entrevista à DW Brasil, Thorau falou sobre a recepção na Alemanha do eternamente controverso "anjo pornográfico". A repercussão tímida da obra rodrigueana do outro lado do planeta levou o acadêmico a intitular de O grande desconhecido um texto seu em homenagem ao dramaturgo, publicado pelo diário alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung.

Thorau atribui parte desse desconhecimento à diminuição do interesse pela literatura latino-americana após o colapso da Alemanha Oriental, que o leva a acreditar que Nelson Rodrigues possa ter sido "vítima" da queda do Muro de Berlim.

DW Brasil: Nelson Rodrigues sempre foi muito controverso, politicamente incorreto até. Numa de suas frases famosas, afirma: "Toda mulher gosta de apanhar, apenas as neuróticas reagem". O desconhecimento da obra do autor brasileiro por aqui pode ser atribuído a fatores como esse, que dificultariam a compreensão pelo público alemão?

Thorau: "Ele é um machista, sim, mas tematiza isso"Foto: privat

Henry Thorau: Acho que não. Autores politicamente incorretos são provocantes e considerados muito atraentes na Alemanha. Nelson Rodrigues foi recebido aqui muito pelo lado do melodrama crítico, um pouco no nível de um Rainer Werner Fassbinder.

A repercussão discreta da obra dele aqui, eu ousaria afirmar, se deve ao fato de ele também ter se tornado uma vítima da queda da Cortina de Ferro na Europa. Depois de 1989, com o colapso da Alemanha Oriental e a queda do Muro, os interesses das editoras se voltaram para outras regiões, como a Europa do Leste. As editoras se interessaram muito pelo que era escrito na Romênia ou em paises como Croácia, Bósnia, Eslováquia. Tanto na prosa como no teatro.

O interesse pela América Latina diminuiu, depois dos anos 70 e 80, épocas do grande boom da literatura latino-americana. Mas hoje chegamos novamente a um ponto onde um novo interesse também cresce pela cultura da América Latina, também como consequência do grande significado econômico que o Brasil vem ganhando.

Mas Nelson Rodrigues continua sendo um ilustre desconhecido do público alemão.

É verdade. Lembro que, em 1980, quando Nelson Rodrigues morreu, escrevi um artigo sobre ele para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, e o título era O grande desconhecido. Um grande conhecido que, entre nós, era ainda desconhecido. Mas acho que isso mudou um pouquinho, profissionais de teatro na Alemanha conhecem o nome, mas não conhecem a obra dele realmente.

Quantas peças de Nelson Rodrigues o senhor já traduziu? Quantas delas foram encenadas por aqui?

Traduzi, ao todo, 12 peças dele. Algumas das mais importantes foram encenadas. Em Colônia, por exemplo, foram montadas Beijo no asfalto e, em 89, Boca de Ouro. Na Schauspielhaus Düsseldorf, por volta de 1990, apresentou-se Álbum de família, com um elenco de atores famosos. Depois veio Beijo no asfalto, logo após a Reunificação alemã, no Teatro Maxim Gorki de Berlim. Antes da Reunificação, houve montagens de Nelson Rodrigues na Alemanha Oriental, como Beijo no asfalto. Durante a Copa de 2006, A falecida foi apresentada em leituras encenadas, e depois veio o projeto do Anjo Negro, do diretor Frank Castorf, que o mesclou com um texto do Heiner Müller, apresentando-o em São Paulo e, posteriormente, em Berlim, no teatro Volksbühne. Então, em 2010 houve uma encenação de Boca de Ouro no mesmo Volksbühne. Além das peças, publicamos a coletânea Goooooool!: Brasilianer zu sein ist das Grösste ("Gooool: ser brasileiro é o máximo", em tradução livre), com crônicas de futebol de Nelson Rodrigues, lançada em 2006 e que fez muito sucesso na Alemanha.

Capa da coletânea "Goooool!", com foto de Pelé

Nelson também era tido como autor conservador, reacionário. Isso não cria uma certa barreira para o alemão?

Em seu livro de memórias, ele próprio se intitulou como um reacionário. E o título era esse mesmo, O reacionário, o que é uma grande autoironia. Naquela época, ele tinha uma visão política mais ampla que a da esquerda ortodoxa. A Passeata dos Cem Mil, ele chamou de uma encenação da esquerda, disse que o povo prefere ir ao estádio de futebol. Nessa passeata ele perguntou: "Onde estão os negros? Os sem dentes? Não vi um negro. São brasileiros jovens, bem situados, de Ipanema, que protestam contra o Vietnã". E era muito difícil para a esquerda digerir isso e aceitar. A esquerda o combateu duramente por causa de frases como essa.

Mas o livro Goooooool!: Brasilianer zu sein ist das Grösste foi um dos três nomeados como "Livro sobre futebol do ano" da Alemanha, em 2006. Foi muito bem recebido no país. Muitos leitores alemães também entenderam bem as nuances da linguagem rodrigueana, que essas crônicas são escritas por um autor de teatro que é patético, emotivo e exagera. É estranho, grotesco e tem sempre uma ironia por trás do que diz. Ele escreve às vezes de forma seriamente exagerada, ao mesmo tempo, sem seriedade. Ele se movimenta sempre em vários níveis de sarcasmo, de um humor mordaz, de ironia. Ele é um machista, sim, mas tematiza isso ao mesmo tempo. Isso faz a qualidade das crônicas dele.

Qual a maior dificuldade em se traduzir Nelson Rodrigues?

É difícil conseguir traduzir essa linguagem dos anos 50, as gírias da época. Sempre perguntava aos colegas e amigos no Brasil para tirar dúvidas. Tive muitas conversas sobre isso, entre outros com Sábato Magaldi, grande especialista em Nelson Rodrigues.

Quando tinha dúvida, escrevia para Sábato ou o encontrava em São Paulo. Ele me ajudou muito. Mas as grandes dificuldades em Nelson são as instruções de cena. Que são bastante fragmentadas e complicadas, porque descrevem estados emocionais das figuras, que são bastante contraditórias. Por isso foi difícil conseguir traduzi-las para o alemão. E sempre tentei, quando dava, me encontrar com os diretores [dos palcos alemães] e sempre fui aos teatros, fiz palestras diante dos atores que interpretavam essas peças, conversei com eles sobre seus personagens. Isso é coisa que o tradutor sempre deveria fazer, se possível. Principalmente quando se trata de um texto de uma outra cultura que não é muito familiar aos atores alemães.

"É estranho, grotesco e tem sempre uma ironia por trás do que ele diz", afirma tradutorFoto: Editora Nova Fronteira

Autor: Marcio Damasceno
Revisão: Augusto Valente / Alexandre Schossler

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