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Saudade de esperança

J.P. Cuenca
15 de maio de 2020

Entre a esperança e a saudade, como saber que momentos serão transformados em memória? Reconhecer as impermanências da vida como sua única constante pode ser estranhamente libertador.

"Seestück", do pintor alemão Gerhard Richter
"Seestück", do pintor alemão Gerhard RichterFoto: picture-alliance/dpa

1.

Dizem que cada coisa tem seu substituto. Substituição que se sucede infinitamente. Mas não acredito nisso: nada se substitui.

Aqui, cada semana é mais íngreme que a anterior – já não tenho mais posição, sentado ou deitado. Escrevo com o aparelho no colo, ele esquenta como uma torradeira sobre as minhas pernas. E agora há um mau contato, o abajur pisca e se apaga. Fico com a luz noturna, o céu púrpura-terroso de São Paulo pelas janelas, o brilho do cristal onde vejo impressas estas letras, uma após a outra, a cada martelada. Estou só, e penso em como escrever o que preciso escrever agora.

2.

Nada jamais irá se igualar a essa cápsula solene e vulgar, angustiosamente temporal – o agora.

A condição de existência para o presente é uma só: tornar-se passado. Ele existe justamente pela sua tendência para não existir, diz Santo Agostinho. E como podemos afirmar que uma determinada coisa existe, se a sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir?

Pois o presente é essa transição efêmera – é muito difícil capturá-lo diante da carga de passado que o constitui e do futuro que já começa a queimar-se. E o que seria esse ponto? Esse presente que nos escapa como um sapo que tentamos agarrar e sempre se coloca mais adiante? Ele é a única dimensão que enxergamos como real, ao mesmo tempo que parece a mais difícil de reter.

Até porque neste momento, no próprio coração do imediato, há sempre um vasto horizonte desconhecido – que muitas vezes só iremos compreender depois.

3.

Pouco distingue as memórias de outros momentos. Nós costumamos reconhecê-las apenas mais tarde, pelas cicatrizes que deixam.

O colunista J.P. Cuenca vive hoje entre São Paulo e BerlimFoto: privat

Num cada vez mais célebre ensaio de 1944, Natalia Ginzburg relata o exílio da família em um vilarejo no interior da Itália, onde buscou refúgio do regime fascista por três anos. Seu marido, Leone, era um escritor e editor envolvido com grupos de resistência a Mussolini. A vidinha na província era simples, o casal saía para passear na neve com os filhos, acompanhava as fofocas dos vizinhos pelas janelas, as mortes dos mais velhos pelos sinos da igreja. A saudade dos amigos, dos livros e da cidade grande era aplacada por imaginar que logo o desterro teria fim.

No fim de Inverno em Abruzzo, a escritora italiana relata que, poucos meses depois de a família deixar o vilarejo, seu marido morreu no presídio Regina Coeli, em Roma. "Naquela época eu tinha fé num amanhã fácil e alegre, rico de desejos realizados (...) Mas aqueles eram os melhores dias da minha vida e só agora que me fugiram para sempre, só agora eu sei."

5.

Freud escreve em A transitoriedade (1916) que a impermanência do belo não implica na sua desvalorização. Ao contrário, a mortalidade valoriza as coisas do mundo, sejam caminhadas invernais num vilarejo, amores, obras de arte ou mesmo a fé no futuro: "É incompreensível que a ideia de transitoriedade do belo deva perturbar a alegria que ele nos proporciona."

Reconhecer as impermanências da vida como sua única constante exige atenção e esforço diários, mas pode ser estranhamente libertador. Uma liberdade diferente, que nos atrai para o lugar e o tempo onde estamos.             

6.

Não há melhor homenagem a um escritor do que a releitura silenciosa dos seus livros. Foi o que fiz, desorganizadamente, desde que recebi a notícia da morte do Sérgio Sant'Anna. Andei relendo clássicos como O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, A tragédia brasileira, Voo da madrugada e produções mais recentes, como o derradeiro – e comovente – Anjo noturno.

A forma curta nunca teve horizontes tão largos, chega aqui aos limites da representação e do próprio universo. Sempre unindo rigor formal e liberdade no processo – essa literatura por vezes parece um ateliê de portas abertas que nos permite acompanhar os pensamentos do escritor que escreve. E quando Sant'Anna abre diálogos altamente elaborados com outras formas, como a arte conceitual, jamais deixa de ser muito divertido, mesmo quando nos coloca à deriva ou diante da tragédia.

Sinto que perdemos o mais contemporâneo dos contemporâneos. Sua partida nos deixa órfãos de presente num país que hoje parece encontrar sua vocação final naqueles versos do Yeats: "Falta fé aos melhores, já os piores se enchem de intensidade apaixonada."

Mas aqui não se trata apenas de uma crise de fé. Nossos melhores estão morrendo. Entre tantas perdas trágicas, em menos de trinta dias se foram os dois maiores escritores vivos do país: Rubem Fonseca e Sérgio Sant'Anna, o segundo em ebulição criativa até o final.

É como se o Brasil estivesse se vingando de si mesmo. Nossa maior saudade hoje talvez seja a mesma de Ginzburg: a de sentir esperança.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

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