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Selic alta alimenta "bolsa-rentismo", diz economista

5 de novembro de 2024

Para Bruno Mäder Lins, provável novo reajuste da taxa básica de juros do país reforça poder do setor financeiro em tomar decisões por dentro dos órgãos públicos.

Fachada do Banco Central
"Embora o Banco Central seja uma instituição de Estado, quem o opera hoje, na prática, são agentes bancários"Foto: Pedro Ladeira/AFP

Depois de ensaiar cortes permanentes nos juros nominais do Brasil, a Selic, da metade de 2023 em diante, o Comitê de Política Monetária (Copom), do Banco Central, entrou em rota de colisão com o governo de Luiz Inácio Lula da SIlva ao interromper o ciclo de reduções em junho, estabilizando a taxa em 10,50% ao ano.

Esse conflito ficou ainda mais intenso no fim de setembro, quando o órgão voltou a elevar a Selic após dois anos, para 10,75%, justificando a decisão pela inflação futura. O comitê se debruçará sobre os juros pela penúltima vez em 2024 nesta semana – e, segundo especialistas ouvidos pela DW nos últimos dias, deverá aumentá-los novamente.

A maioria deles acredita que o ajuste será de 0.5 ponto porcentual para cima, deixando a taxa em 11,25%. Se se confirmar, o Brasil sairá de 2024 com a quarta maior taxa de juros nominais do mundo, atrás apenas de Turquia (50%), Argentina (40%) e Rússia (19%), de acordo com um levantamento da consultoria Moneyou.

Considerando juros reais, que descontam a inflação, o país ocuparia o segundo lugar desse ranking, atrás apenas dos russos – que, em guerra, têm uma margem de 9,05% hoje.

Para o economista Bruno Mäder Lins, o protagonismo do setor financeiro explica esses números. "O Brasil é um dos únicos países do mundo em que títulos emitidos pelo Estado são quase sempre indexados. Assim, se os juros sobem, basta ter na mão um papel da dívida pública indexado para ganhar dinheiro com ele", afirma.

Mestre em Política Econômica pela Universidade de Genebra, na Suíça, e hoje pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mäder nota ainda que o setor financeiro se apropriou tanto da capacidade de endividamento do Estado, já que ele se apropriou dos órgãos que operam a dívida pública, quanto de parte do orçamento de empresários e pessoas comuns, ao criar um contexto em que eles precisam sempre buscar dinheiro no mercado de crédito. "O problema é que, agora, a própria economia brasileira está dependente dessa dinâmica", prossegue em entrevista à DW.

DW: Por que o Brasil está na lista dos países com os maiores juros do mundo – tanto reais quanto nominais?

Bruno Mäder Lins: Porque uma hegemonia financeira se estruturou no país criando condições para expropriar renda do Estado, no mercado de títulos da dívida pública, e de outros setores da economia – sobretudo da indústria, mas também da própria população, por meio do endividamento dela no mercado de crédito.

A ferramenta utilizada para isso são os juros altos, especialmente os de valor real. Estado, empresários e pessoas comuns transferem parte dos seus rendimentos diretamente para essa coalizão financeiro-rentista, conformando o maior programa de transferência de renda que nós temos hoje – já que o volume de dinheiro que se movimenta nesse fluxo, cerca de 30% do PIB, segundo nossos cálculos, deixa o Bolsa Família no chinelo. É um "Bolsa-rentismo".

Qual é a particularidade do Brasil, considerando que outros países também convivem com juros altos?

Para além da intensidade da atuação dessa coalizão, que é muito forte, nossa particularidade é o formato do nosso sistema financeiro. A elite brasileira nasceu já como mercado e como Estado. Não é à toa que o [sociólogo] Florestan [Fernandes] a chamava de "elite estamental". Ela age em ambos os terrenos, não domina um ou outro, como costuma acontecer em outros lugares. Isso se materializa em órgãos de gerência do Estado, como o Banco Central, por exemplo, que é o ator público de regulação do mercado. Ele está totalmente corrompido em favor da coalizão financeira. É só reparar que, embora seja uma instituição de Estado, quem a opera hoje, na prática, são agentes bancários.

E como eles operam?

O Brasil é um dos únicos países do mundo em que títulos emitidos pelo Estado são quase sempre indexados [a indicadores econômicos de inflação ou de juros]. Assim, se os juros sobem, basta ter na mão um papel da dívida pública indexado para ganhar dinheiro com ele. O proprietário do título nunca perde. É por isso que o Copom cumpre sua tarefa de manter os juros sempre elevados. Em outros países, ao contrário, os títulos costumam ser pré-fixados [a algum valor definido no ato da compra]. Essa pequena diferença muda absolutamente a dinâmica.

A mudança na presidência do Banco Central em curso agora, com o economista Gabriel Galípolo, indicado por Lula assumindo em 2025, produz algum efeito sobre essa lógica?

Não. Para além de ser algo estrutural, a economia brasileira chegou a ponto de depender totalmente dessa dinâmica. Mesmo que alguém crítico a isso chegue à liderança do banco e, então, decida baixar a Selic a níveis justos, aproximá-la dos patamares internacionais ou ainda desindexar emissões de títulos, esses não seriam ajustes tão simples de se fazer.

Por quê?

Porque um dos canais utilizados pelo setor financeiro para operar a expropriação de renda é justamente pressionando o Estado para emitir papéis do jeito que ele quer. Houve momentos, por exemplo, em que o Tesouro Nacional tentou emitir mais papéis pré-fixados, com juros baixos e prazos mais longos, forçando seus proprietários a assumirem riscos. Mas todas as vezes em que isso aconteceu, o Banco Central correu para operar papéis concorrentes com os títulos do Tesouro, as chamadas "operações compromissadas".

O resultado é que, sem mercado, o Tesouro desiste e volta a emitir títulos indexados. Em outras palavras, ao invés de operacionalizar as duas instituições em favor do país, o Estado fica refém do setor financeiro – que pressiona uma ou outra a entregar o que ele quer. Não é tão fácil mudar essa estrutura.

Como essa pressão se materializa?

O setor financeiro usa papéis do Tesouro Nacional para se proteger do contexto econômico. Em momentos de inflação alta, por exemplo, basta pressionar o Tesouro a emitir mais papéis indexados ao IPCA [o indicador que mede a alta de preços no Brasil]. Em momentos de crise econômica generalizada, a pressão é para emitir títulos indexados à taxa Selic – que, curiosamente, são chamados de "papéis de crise" no mercado financeiro. Isso porque, num cenário assim, a Selic estará mais alta, e o papel valerá mais. Somente em períodos de estabilidade é que o Tesouro adquire liberdade para emitir títulos pré-fixados – usualmente emitidos pelos tesouros de outros países.

A pressão é o único instrumento utilizado para fazer isso?

Não. Há pelo menos outros três canais utilizados.

Quais são eles?

Um deles é a definição da taxa Selic, basicamente, pelos bancos. O Copom toma decisões sobre ela baseado na opinião deles. Basta notar como a variação da Selic é sempre a próxima a que aparece, nas semanas anteriores, no boletim Focus. Ele praticamente adianta a decisão do Copom.

E os outros dois canais?

O terceiro é a quebra no monopólio do Estado em favor do sistema bancário. Na maioria dos países, há uma regulação estatal do mercado financeiro que busca favorecer a nação. No Brasil, ao contrário, o Tesouro Nacional e o Banco Central se tornaram concorrentes, porque estão competindo para entregar o que o sistema financeiro quer: indexação de títulos. É um fenômeno profundamente brasileiro.

O último canal atua no mercado de crédito, quando os bancos definem os preços das diversas linhas de crédito da forma que querem. Se um banco perde um único real em um título da dívida pública, ele imediatamente sobe sua margem de lucro no mercado de crédito, que chamamos de spread bancário.

E o Brasil tem um dos maiores spreads bancários do mundo, inclusive.

Entre 2016 e 2020, por exemplo, os bancos passaram todos os custos da crise econômica para os consumidores de crédito. Os lucros deles permanecem nos mesmos patamares, mesmo com o PIB caindo, porque eles ajustaram o spread, fazendo-o ficar entre os maiores do mundo [39,8% em setembro, segundo o Banco Central]. É um jeito de entender o alto nível de endividamento das famílias. O governo precisou até criar um programa [o Desenrola Brasil] para resolver isso.

No seu argumento, além das pessoas, o próprio empresariado também é expropriado. Por quê?

Na verdade, há um racha dentro desse grupo. De um lado estão as grandes empresas, que conseguem encontrar maneiras de se beneficiar dessa lógica ao aumentar receitas financeiras em detrimento da receita operacional. As Lojas Americanas não foram exceção, mas confirmaram esse padrão sistêmico de crescimento de receitas financeiras de corporações que não atuam no setor financeiro. Mas, nas pequenas e médias empresas, a situação é outra, porque elas não conseguem financiamentos fora dos bancos e tampouco têm liquidez. Ficam reféns do sistema financeiro. É um racha que atravessa os serviços e a indústria.

Isso ajuda a entender o baixo crescimento do PIB nos últimos anos?

É isso que muitos pesquisadores têm feito, inclusive, conectando financeirização à desindustrialização do Brasil. Em 1971, por exemplo, 21,4% do PIB brasileiro vinha do setor industrial. Em 2017, esse número era de 12,6%. Caiu à metade. Esses dados mostram como a queda da indústria se correlaciona com o período em que prevaleceu o setor financeiro. Quanto mais o Estado opera a favor dele, mais opera contra a produção industrial, porque o capital, quando se vê diante das duas alternativas possíveis, cada vez mais escorre para o setor financeiro. Mas, ao fazer isso, ele deixa de produzir. É um dilema estrutural.