Com a construção de novos abrigos ao custo de 18 milhões de euros, escavadeiras já destruíram um terço do maior campo de refugiados da Europa. Caos e violência só são evitados por causa de voluntários.
Anúncio
Lar momentâneo de quase 5 mil requerentes de asilo, "a selva" – um acampamento em Calais, no norte da França, próximo à estrada que dá acesso às balsas em direção à Inglaterra – terá um terço de suas construções removidas, para a criação de uma zona de segurança entre os barracos e a rodovia. O objetivo é barrar a aproximação de refugiados a veículos que vão para o Reino Unido.
Com tantas pessoas vivendo em meio a pilhas de lixo e lama misturada com neve, uma cena caótica – e potencialmente violenta – só foi evitada na segunda-feira (19/01) porque centenas de voluntários europeus ajudaram os habitantes do acampamento a remover suas coisas. Cerca de 1.500 pessoas foram realocadas.
Voluntário no acampamento há quase quatro meses, o jovem londrino Ben Harrison, de 20 anos, descreve a ação como "um esforço monumental".
"Pessoas ouviram sobre o despejo e vieram do Reino Unido com caminhões e trailers para ajudar na mudança das casas", conta. "Sem a ajuda voluntária, a polícia teria usado gás lacrimogêneo para tirar as pessoas de suas casas. Foi ruim mudá-los assim, mas evitamos qualquer possibilidade de violência."
"É cruel despejar pessoas no inverno"
Harrison conversa com a reportagem da DW no Kabul Café, um dos muitos estabelecimentos que fazem a "selva" parecer mais com uma pequena cidade do que com um acampamento de refugiados.
Vestindo uma jaqueta amarela cheia de lama, tomando um copo de chá e com olhos pensativos, o jovem afirma que "é cruel despejar pessoas no inverno", mas lembra que, pelo menos, a demolição foi anunciada com antecedência.
"O último despejo ocorreu em setembro embaixo do viaduto. As máquinas chegaram sem aviso, no meio da noite, e as pessoas não tiveram tempo de pegar documentos, requerimentos de asilo e os poucos itens pessoais que ainda possuíam. Às vezes o governo tolera o acampamento, e outras vezes não", explica.
A demolição veio após o novo governo abrir abrigos adjacentes à "selva". As moradias custaram 18 milhões de euros e são compostas por containeres brancos com capacidade para receber 1,5 mil pessoas. O local rodeado por uma cerca é vigiado por seguranças.
Cerca de 300 pessoas já foram transferidas para o novo abrigo, e 50 pessoas são recebidas nos containeres diariamente, afirma Barbara Jurkiewicz, relações públicas da La Vie Active, organização que administra o local.
No local é realizado um escâner 3D da palma da mão dos futuros moradores. A medida é controversa. Muitos residentes da "selva" temem que as chances de deixar a França sejam reduzidas com qualquer forma de identificação junto ao governo francês.
"Não quero ficar na França, queremos ir para o Reino Unido", diz Abdul Mumam, um refugiado sudanês que está em Calais desde outubro. "Prefiro ficar aqui, pois a polícia vai tirar minhas impressões digitais e me obrigar a pedir asilo na França."
Apesar as temperaturas congelantes e dos ventos cortantes do Báltico, muitos requerentes de asilo compartilham a opinião de Mumam, expressando uma profunda desconfiança com o governo e a polícia francesa e optando por permanecer em abrigos precários demais para o inverno europeu.
"Damos boas-vindas as pessoas que se mudam para os containeres, mas não podemos os forçá-los a nada", reforça Jurkiewicz.
Mais de 15 anos de existência
A "selva" existe há mais de 15 anos, perto da entrada do Eurotúnel na fronteira da França com a Inglaterra. Embora a recente onda migratória tenha trazido mais refugiados para Calais, as precárias condições do campo não são novas.
Frustrados com anos de inação, voluntários no local condenam as Nações Unidas e políticos europeus pôr não reconhecerem "a selva" como um campo oficial, o que permitiria aos seus habitantes receberam assistência da agência da ONU para os refugiados (Acnur).
Mas quando essas reclamações chegam a Celine Schmitt, uma representante do Acnur que monitora a situação no local, ela questiona se o estabelecimento de outro campo de refugiados na França é realmente a solução.
"É importante colocar as pessoas em um local seguro e quente", diz Schmitt, lembrando que a França possui vários abrigos para requerentes de asilo. "As condições são difíceis aqui, e é difícil para as pessoas pensarem sobre o futuro e tomarem boas decisões."
Schmitt afirma ainda que um funcionário do Acnur será enviado à "selva" para informar os habitantes sobre o processo de asilo e os direitos dos refugiados. A ONU também oferece transporte e incentiva os migrantes a irem para um abrigo do governo, onde serão acomodados e receberão comida.
Desde o outono, cerca de 2 mil pessoas foram para esses centros, e muitas abriram processos para ficar na França, conta Schmitt.
Voltando ao Cabul Café, Ben Harrison faz uma ligação atrás da outra enquanto escavadeiras começam a limpar o terreno na área afegã. Ele afirma que quase todos foram removidos do local antes da chegada das máquinas, mas que continua ansioso por uma solução para a "selva":
"É difícil condenar alguém por fazer o que o sistema internacional permite. Agora temos essa situação onde médicos e contadores vivem em tendas, tremendo com temperaturas congelantes, entre muitas doenças."
2015, o ano dos refugiados
Nunca tantas pessoas estiveram em fuga como em 2015. Muitos delas seguiram para a Europa, com o objetivo de chegar à Alemanha ou à Suécia. Confira uma restrospectiva fotográfica do "ano dos refugiados".
Foto: Reuters/O. Teofilovski
Chegada à União Europeia
Esses jovens sírios superaram uma etapa perigosa da sua viagem: eles conseguiram chegar à Grécia e, assim, à União Europeia. O objetivo final, porém, ainda não foi alcançado: eles querem continuar a jornada para o norte, em direção a outros países-membros do bloco. Em 2015, a maioria dos refugiados seguiu para a Alemanha e para a Suécia.
Foto: Reuters/Y. Behrakis
Perigosa travessia do Mediterrâneo
O caminho que eles deixam para trás é extremamente perigoso. Vários barcos com refugiados, nem sempre aptos à navegação, já viraram durante a travessia do Mar Mediterrâneo. Estas crianças sírias e seu pai tiveram sorte: eles foram resgatados por pescadores gregos na costa da ilha de Lesbos, na Grécia.
Foto: Reuters/Y. Behrakis
A imagem que comoveu o mundo
Aylan Kurdi, de 3 anos, não sobreviveu à fuga. No início de setembro, ele se afogou no Mar Egeu, juntamente com o irmão e a mãe, ao tentar chegar à ilha grega de Kos. A foto do menino sírio, morto na praia de Bodrum, espalhou-se rapidamente pela mídia e chocou pessoas de todo o mundo.
Foto: Reuters/Stringer
Onde as diferenças são visíveis
A ilha grega de Kos, a menos de 5 quilômetros de distância da Turquia continental, é o destino de muitos refugiados. As praias geralmente cheias de turistas servem de ponto de desembarque, como no caso deste grupo de refugiados paquistaneses que chegou à costa da Grécia com um bote de borracha.
Foto: Reuters/Y. Behrakis
Em meio ao caos
Porém, muitos refugiados não conseguem simplesmente seguir viagem quando chegam a Kos. Eles somente podem seguir para o continente após serem registrados. Durante o verão europeu, a situação se agravou quando as autoridades fizeram com que os refugiados esperassem pelo registro num estádio, sob o sol escaldante e sem água.
Foto: Reuters/Y. Behrakis
Um navio para refugiados
Por causa da condições precárias, tumultos eram frequentes na ilha de Kos. Para acalmar a situação, o governo grego fretou um navio, que permaneceu ancorado e foi transformado em alojamento temporário para até 2.500 pessoas e em centro de registro de migrantes.
Foto: Reuters/A. Konstantinidis
"Dilema europeu"
Mais ao norte, na fronteira da Grécia com a Macedônia, policiais não permitiam mais a passagem de pessoas, entre elas crianças aos prantos, separadas de seus pais. Esta foto tirada pelo fotógrafo Georgi Licovski no local, e que mostra o desespero de duas crianças, foi premiada pelo Unicef como a imagem do ano, já que mostra "o dilema e a responsabilidade da Europa".
Foto: picture-alliance/dpa/G. Licovski
Sem conexões para refugiados
No final do verão europeu, Budapeste se transformou em símbolo do fracasso das autoridades e da xenofobia. Milhares de refugiados estavam acampados nas proximidades de uma estação de trem da capital húngara, pois o governo do país os proibira de seguir viagem. Muitos decidiram seguir a pé em direção à Alemanha.
Foto: picture-alliance/dpa/B. Roessler
Fronteiras abertas
Uma decisão na noite de 5 de setembro abriu caminho para os refugiados: a chanceler federal alemã, Angela Merkel, e o chanceler austríaco, Werner Faymann, decidiram simplesmente liberar a continuação da viagem por parte dos migrantes. Como consequência, vários trens especiais e ônibus seguiram para Viena e Munique.
Foto: picture alliance/landov/A. Zavallis
Boas vindas em Munique
No primeiro final de semana de setembro, cerca de 20 mil refugiados chegaram a Munique. Na estação central de trem da capital da Baviera, inúmeros voluntários se reuniram para receber os refugiados com aplausos e lhes fornecer comida e roupas.
Foto: Getty Images/AFP/P. Stollarz
Selfie com a chanceler
Enquanto a chanceler federal Angela Merkel era aplaudida por refugiados e defensores de sua política de asilo, muitos alemães se voltavam contra a política migratória. "Se tivermos de pedir desculpas por mostrar uma face acolhedora em situações de emergência, então este não é mais o meu país", respondeu a chanceler. A frase "Nós vamos conseguir" se tornou o mantra de Merkel.
Foto: Reuters/F. Bensch
Histórias na bagagem
No final de setembro, a polícia federal alemã divulgou uma imagem comovente: o presente que uma menina refugiada deu a um policial da cidade alemã de Passau. O desenho mostra o horror que vários migrantes vivenciaram e o quão felizes eles estavam por, finalmente, estarem em um local seguro.
Foto: picture-alliance/dpa/Bundespolizei
O drama continua
Até o final de outubro, mais de 750 mil refugiados haviam chegado à Alemanha. Mas o fluxo não parava. Sobrecarregados, os países da chamada Rota dos Bálcãs decidiram fechar suas fronteiras. Apenas sírios, afegãos e iraquianos estavam autorizados a passar. Em protesto, migrantes de outros países chegaram a costurar seus lábios.
Foto: picture-alliance/dpa/G. Licovski
Sem fim à vista
"Ajude-nos, Alemanha" está escrito em cartazes de manifestantes na fronteira com a Macedônia. Na Europa, o inverno se aproxima, e milhares de pessoas, entre elas crianças, estão presas nas fronteiras. Enquanto isso, até mesmo a Suécia retomou o controle temporário de fronteiras. Em 2016, o fluxo de refugiados deverá continuar.