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CriminalidadeBrasil

"Sem subnotificação, Brasil tem 800 mil estupros por ano"

22 de julho de 2023

País teve recorde de estupros em 2022, em parte como reflexo do isolamento social na pandemia. Dados do Anuário de Segurança Pública mostram que seis em cada dez vítimas têm até 13 anos de idade.

Mulher de perfil, em foto à meia luz, sem identificar a pessoa. Ao fundo, uma janela.
Maioria dos autores de violência sexual contra a mulher são pessoas com quem as vítimas têm algum vínculo afetivo ou familiarFoto: Gulshan Khan/AFP/Getty Images

Em 2022, o Brasil teve o maior número de registros de casos de estupros desde 2011, quando os dados se tornaram mais confiáveis: 74.930 vítimas. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na última semana, registrou aumento em todos os indicadores relacionados à violência de gênero, na comparação com o ano anterior.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo relatório, destaca o impacto do represamento de registros durante a pandemia. A influência desse fator está ligada a um dos aspectos mais chocantes revelados pelos números: o perfil das vítimas de violência sexual, em sua maioria crianças e adolescentes.

"Estamos falando de crianças. Nessa faixa etária, o ato de vir falar, denunciar, precisa ter um adulto como intermediador dessa denúncia, desse pedido de ajuda. A partir da experiência de outros países, observamos um impacto da pandemia nos registros desses casos", diz Juliana Martins, coordenadora institucional do fórum.

Em entrevista à DW, a pesquisadora explica que as escolas são um importante espaço de denúncia para essa faixa etária, mas o isolamento social imposto pela pandemia privou os jovens desses espaços. Os principais autores dos crimes são pais e padrastos (44,4%), além de conhecidos (18%) e outros familiares das vítimas.

"Isso é muito assustador, contraria aquele imaginário social da mulher vítima de violência sexual na rua escura, no beco onde um desconhecido vem e comete a violência. Esses casos acontecem também, mas são raros. Os números mostram que a maior parte dos casos tem como autor alguém que é conhecido e familiar da vítima", diz Martins.

A pesquisadora afirma que os números omitem uma subnotificação superior a 90%. Ela se baseia em um estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em março deste ano. O trabalho concluiu que 8,5% dos casos chegam ao conhecimento da polícia, e só 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.

"Descontada a subnotificação, o número de estupros possivelmente passaria de 800 mil por ano, quase dois por minuto", constata.

DW: Que fatores explicam o número recorde de estupros no Brasil, registrados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 2022?

Juliana Martins: Consideramos a série histórica a partir de 2011, quando a qualidade dos dados começou a melhorar no Brasil. Portanto, o ano passado teve o maior número de registros desde 2011. Há dois fatores importantes que merecem atenção.

Os dados do anuário mostram que todos os tipos de violência de gênero aumentaram em 2022: feminicídio, homicídio doloso de mulheres, ameaças, lesões corporais decorrentes de violência doméstica. Aumentaram também as chamadas para os números de emergência das polícias militares, o 190, por causa de violência doméstica. Estamos falando de aumento em todos os indicadores nessa área.

Quando falamos especificamente de estupro, partimos do pressuposto de que a violência sexual é o tipo de violência com a maior subnotificação. Observamos isso em pesquisas realizadas não só no Brasil, mas em diversos países.

O cenário é muito pior do que se apresenta a partir dos dados do anuário. Um estudo recente do Ipea mostra que apenas 8,5% dos estupros são registrados nas polícias, e só 4,2% pelo sistema de saúde. Descontada a subnotificação, superior a 90%, o número de estupros possivelmente chegaria a 822 mil por ano, dois a cada minuto.

Como entender essa subnotificação tão alta?

O perfil das vítimas revela que seis em cada dez tinha entre zero e 13 anos. Estamos falando de crianças. Nessa faixa etária, o ato de vir falar, denunciar, precisa ter um adulto como intermediador dessa denúncia, desse pedido de ajuda.

A partir da experiência de outros países, observamos um impacto da pandemia nos registros desses casos. Durante o período de isolamento social, com as escolas fechadas e dentro de casa, essas crianças ficaram muito mais vulneráveis às violências. A exemplo do que aconteceu em outros lugares, mas aqui de maneira bastante forte, as famílias tiveram a vida socioeconômica bastante afetada perda de emprego, diminuição de renda.

Nesse contexto, observou-se um aumento do estresse no contexto familiar, além do consumo de bebida alcoólica. Todos esses fatores se deram ao redor de crianças e adolescentes em idade escolar. Nesse período, tivemos uma queda nos registros.

Quando as escolas reabriram, as crianças voltaram a frequentar o espaço escolar, e observamos um aumento das denúncias. Não que a escola seja a principal responsável por isso, mas trata-se de um ator muito importante, pois ajuda a identificar mudanças no comportamento das crianças e também a nomear que algo não vai bem, que tem alguma coisa errada. É ainda um espaço seguro de escuta pelos profissionais da educação, adquirindo a confiança por parte dessas crianças, para poderem pedir ajuda.

Temos casos de crianças que identificaram o estupro feito pelo pai a partir de uma palestra sobre prevenção de abuso na escola. A partir daí, a criança ganha coragem de falar a respeito, e a denúncia vem à tona. Então, pode ser que violências tenham começado durante a pandemia, ou se intensificado durante o período.

Quais costumam ser as circunstâncias e os autores desse crime que violenta tantas jovens mulheres e crianças no Brasil?

Tanto nos casos de violência sexual contra a mulher, como nos de feminicídio, os autores da violência são pessoas com quem as vítimas têm algum vínculo afetivo ou familiar. Se não é um parente, é um vizinho, um conhecido, alguém que mantém algum vínculo com essa família. Estamos falando necessariamente de um aumento da violência intrafamiliar. Isso é muito assustador, contraria aquele imaginário social da mulher vítima de violência sexual na rua escura, no beco onde um desconhecido vem e comete a violência. Esses casos acontecem também, mas são raros. Os números mostram que a maior parte dos casos tem como autor alguém que é conhecido e familiar da vítima.

É uma violência de muita complexidade, porque o ato da denúncia se torna ainda mais difícil, ainda mais complexo. Muitas vezes, as crianças, especialmente, têm dificuldade de entender que aquilo que aconteceu com elas é uma violência e, mais ainda, um crime. Se o autor dessa violência é o pai, um padrasto, alguém de quem essa criança gosta e tem como referência afetiva, entender o que a pessoa está fazendo como uma violência, traduzir e compreender isso pode levar anos.

Por isso a escola é tão fundamental na identificação dessas violências, para nomeá-las e encaminhar as crianças para redes de proteção e acolhimento, além de orientar e ajudar famílias que estejam inseridas no contexto da violência.

O aumento de casos no Brasil se concentra na região amazônica. Que características da região favorecem esse quadro de vulnerabilidade?

A região amazônica tem muitas especificidades que merecem um aprofundamento. Há ali uma intersecção entre crimes ambientais, crime organizado, tráfico internacional de drogas, garimpo ilegal. Isso se alia a uma precariedade na presença do Estado, seja por meio das forças de segurança, seja por outros serviços de proteção e assistência. As vítimas desses tipos de violência ficam ainda mais distantes da rede de proteção.

Dos nove estados que compõem a Amazônia Legal, quatro aparecem entre os que mais registram estupro de vulnerável e exploração sexual. Neste momento em que todos estão olhando para a Amazônia e falando em desenvolvimento sustentável, não dá para falar de sustentabilidade sem falar de proteção à infância e à adolescência. O Estado precisa enfrentar esse tipo de violência na região.

Existe uma cultura do estupro no Brasil? Como enfrentar o problema?

Vemos um quadro em que seis a cada dez vítimas têm entre 0 e 13 anos, sendo que 44,4% dos autores dessa violência são pais ou padrastos. A gente está falando de uma violência que, de certa forma, é naturalizada, já que esses tutores das crianças, pais, padrastos, acham tudo bem abusar sexualmente de seus filhos ou enteados. Não estamos falando de pessoas doentes, com algum desvio, psicologicamente comprometidas. São cidadãos comuns, muitas vezes admirados no seu círculo social, no seu contexto de trabalho.

Precisamos romper com a naturalização que acaba acontecendo. Tendemos a "patologizar" o autor da violência, colocá-lo como um monstro. Mas não há patologia nenhuma. São pessoas comuns que cometem esse tipo de violência, porque vivemos num país misógino, machista. Nós temos uma cultura do estupro, sim. Infelizmente, é um tipo de violência naturalizado, histórico e culturalmente construído, com expectativas de papéis sociais a serem desempenhados por homens e mulheres. A partir desses papeis sociais, que nos colocam numa posição de subalternidade, a cultura do estupro se fortalece em nosso país. São relações que, além de naturalizadas, passam de geração em geração.

Há uma mudança cultural que precisa ser feita e leva tempo. Conforme tentamos avançar em ações concretas para a promoção da igualdade de gênero, recebemos como reação mais violência, de movimentos ultraconservadores. É a teoria do backlash, dessa violência como uma resposta para tentar restabelecer uma superioridade masculina em relação às mulheres. Ou seja, colocar mulheres e meninas de volta em um lugar do qual não deveriam ter saído. Em 2022, último ano de Jair Bolsonaro na presidência, tivemos o maior corte de recursos na área do enfrentamento à violência contra a mulher pelo governo federal.

Os dados do fórum trazem a importância da atuação das polícias no enfrentamento, porque são acionadas para isso. As polícias militares, principalmente, têm um método para medir a eficiência do trabalho policial a partir do número de prisões em flagrante que o agente realiza, além das apreensões de armas e drogas. Portanto, o atendimento de violência doméstica é invisível para a instituição policial. Agora, eles estão começando a contar os chamados do 190. Até bem pouco tempo atrás, não havia um campo específico nos registros para violência doméstica. Muitas vezes, para o policial, é frustrante atender essa mulher, porque nem sempre aquele atendimento vai resultar numa prisão em flagrante, justamente o que conta para a instituição dele como algo relevante.

Isso ilustra a complexidade do enfrentamento das violências de gênero, que incluem a violência sexual. É fundamental ter profissionais capacitados para fazerem o primeiro atendimento, o segundo atendimento, o terceiro atendimento e quantas vezes forem necessários para que mulheres e meninas se sintam acolhidas e possam ingressar num sistema de proteção, que deve ser articulado em rede, considerando outros parceiros, incluindo as áreas da saúde, educação, assistência social, justiça. É um enfrentamento que precisa de muitas mãos e de muitas frentes.

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