Em meio à crise envolvendo Sergio Moro, senadores aprovam versão desfigurada do pacote de “Dez medidas contra a corrupção” que prevê detenção para magistrados que atuarem com “motivação político-partidária”.
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O Senado aprovou nesta quarta-feira (26/06) o projeto de lei que define e pune o abuso de autoridade praticado por juízes e membros do Ministério Público.
O texto estava parado desde 2017 e voltou a tramitar com celeridade em meio ao escândalo que envolve o ministro da Justiça, Sergio Moro, cuja conduta como juiz à frente da Lava Jato entre 2014 e 2018 passou a ser alvo de questionamentos após a revelação de trocas de mensagens entre o ex-magistrado e membros da força-tarefa da operação.
A medida sobre abuso por parte de autoridades foi aprovado dentro do chamado pacote de "Dez medidas contra a corrupção", um projeto de iniciativa popular originalmente defendido por membros da Lava Jato, mas que foi drasticamente alterado pela Câmara no final de 2016.
À época, as mudanças foram alvo de críticas e os deputados foram acusados de desfigurar o projeto, enfraquecendo várias das medidas e incluindo "jabutis" em meio ao texto. Na linguagem do mundo político, um "jabuti" é a prática de inserir em uma proposta de lei uma emenda que não tem nenhuma relação com o texto.
Após a aprovação na Câmara, o projeto seguiu para o Senado, mas pouco avancou nos últimos dois anos. Isso mudou há duas semanas, quando o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), relator do projeto, apresentou seu parecer, modificando alguns pontos aprovados pela Câmara.
Esse parecer foi aprovado também nesta quarta pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e seguiu no mesmo dia para análise do plenário. A inclusão na pauta ocorreu a pedido do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).
Um texto base, sem os trechos que tratam do abuso de autoridade, foi inicialmente aprovado por 48 votos a favor e 24 contra. Já a inclusão dos trechos sobre o abuso foi aprovada simbolicamente em plenário. Agora, o pacote terá que retornar à Câmara porque foi modificado pelos senadores.
De acordo com o projeto aprovado pelos senadores, um magistrado incorrerá em abuso de autoridade se: proferir julgamento quando impedido por lei, atuar com evidente motivação política: expressar opinião, por qualquer meio de comunicação, no meio do processo, entre outros pontos.
Já para os membros do Ministério Público, ficará caracterizado como abuso se um procurador ou promotor: instaurar processo sem provas e indícios suficientes; expressar, por qualquer meio de comunicação, "juízo de valor indevido" no meio de processo não concluído; atuar com evidente motivação político-partidária.
Pelo texto, a autoridade que violar esses itens estará sujeita a uma pena de detenção de seis meses a dois anos, além de multa.
No mesmo pacote, os senadores ainda aprovaram medidas que criminalizam o caixa dois e a compra de votos, além de incluir a corrupção e o peculato (desvio de recursos públicos) na lista de crimes hediondos.
Por meio de um vídeo postado no Twitter, o procurador Deltan Dallagnol - defensor do pacote original e um dos personagens do escândalo que envolve Moro - classificou o texto aprovado como um retrocesso e um obstáculo na luta contra a corrupção e pediu o apoio da sociedade e dos senadores.
"Para vocês terem uma ideia, dentre as pegadinhas que tem lá, tem a possibilidade de o investigado investigar e acusar o próprio investigador, por isso nós somos contra esse projeto. Nós somos, sim, a favor de uma punição adequada para o crime de abuso de autoridade, consistente, como aquela prevista no projeto de lei apresentado [por procuradores] em 2017 no Senado Federal que não tem pegadinhas e avança nesse sentido”, afirmou.
A Polícia Federal apura, desde 2014, um esquema bilionário de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. Entenda a maior investigação sobre corrupção já conduzida no país.
Foto: AFP/Getty Images
O início
A Operação Lava Jato foi deflagrada pela Polícia Federal em 17 de março de 2014. Começou investigando um esquema de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro e descobriu a existência de uma imensa rede de corrupção envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras do país e políticos. O nome vem de um posto de gasolina em Brasília, um dos alvos da PF no primeiro dia de operação.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Brandt
O esquema
Executivos da Petrobras cobravam propina de empreiteiras para, em troca, facilitar as negociações dessas empresas com a estatal. Os contratos eram superfaturados, o que permitia o desvio de verbas dos cofres públicos a lobistas e doleiros, os chamados operadores do esquema. Eles, por sua vez, eram encarregados de lavar o dinheiro e repassá-lo a uma série de políticos e funcionários públicos.
Foto: Reuters/S. Moraes
As figuras-chave
O esquema na Petrobras se concentrava em três diretorias: de abastecimento, então comandada por Paulo Roberto Costa; de serviços, sob direção de Renato Duque; e internacional, cujo diretor era Nestor Cerveró. Cada área tinha seus operadores para distribuir o dinheiro. Um deles era o doleiro Alberto Youssef (foto), que se tornou uma das figuras centrais da trama. Todos os citados foram condenados.
Foto: imago/Fotoarena
As empreiteiras
As grandes construtoras do país formaram uma espécie de cartel: decidiam entre si quem participaria de determinadas licitações da Petrobras e combinavam os preços das obras. Os executivos da estatal, por sua vez, garantiam que apenas o cartel fosse convidado para as licitações. Entre as empresas investigadas estão Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa. Vários executivos foram condenados.
Foto: Reuters/P. Whitaker
Os políticos
O núcleo político era formado por parlamentares de diferentes partidos, responsáveis pela indicação dos diretores da Petrobras que sustentavam a rede de corrupção dentro da estatal. Os políticos envolvidos recebiam propina em porcentagens que variavam de 1% a 5% do valor dos contratos, segundo os investigadores. O dinheiro foi usado, por exemplo, para financiar campanhas eleitorais.
Foto: J. Sorges
De Cunha a Dirceu...
A investigação só entrou no mundo político em 2015, quando a Lava Jato foi autorizada a apurar mais de 50 nomes, entre deputados, senadores e governadores de vários partidos. Desde então, viraram alvo de investigação políticos como os ex-parlamentares Eduardo Cunha (foto) e Delcídio do Amaral, ambos cassados, os senadores Renan Calheiros, Fernando Collor e o ex-ministro José Dirceu.
Foto: Reuters/A. Machado
... e Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é réu em dez processos relacionados à Lava Jato, sendo acusado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução da Justiça. As denúncias indicam que Lula teria recebido benefícios das empreiteiras OAS e Odebrecht, envolvendo imóveis no Guarujá e São Bernardo do Campo. Em 2018, ele foi preso e teve uma nova candidatura à Presidência barrada.
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As prisões
A Lava Jato quebrou tabus no Brasil ao encarcerar altos executivos de empresas e importantes figuras políticas. Entre investigados e aqueles já condenados pela Justiça, estão o executivo Marcelo Odebrecht, ex-presidente da Odebrecht; Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara; Sérgio Cabral, ex-governador do Rio; os ex-ministros José Dirceu (foto) e Antonio Palocci, entre outros.
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As delações
Os acordos de delação premiada são considerados a força-motriz da operação. Depoimentos como o de Marcelo Odebrecht (foto) chegam com potencial para impactar fortemente a investigação. O acordo funciona assim: de um lado, os delatores se comprometem a fornecer provas e contar o que sabem sobre os crimes, além de devolver os bens adquiridos ilegalmente; de outro, a Justiça reduz suas penas.
Foto: Getty Images/AFP/H. Andrey
O juiz
Responsável pela Lava Jato na 1° instância, o ex-juiz federal Sergio Moro logo ganhou notoriedade. Em manifestações, foi ovacionado pelo povo e chegou a ser chamado de "herói nacional". Mas também foi acusado de agir com parcialidade política. Em 2018, deixou o cargo e aceitou ser ministro do presidente Jair Bolsonaro, cuja candidatura foi beneficiada pela prisão de Lula no ano anterior.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Expansão internacional
Se começou num posto de gasolina em Brasília, a Lava Jato ganhou proporções internacionais com o aprofundamento das investigações. Segundo dados do Ministério Público Federal levantados a pedido da DW Brasil, a investigação já conta com a cooperação de pelo menos outros 40 países (veja no gráfico acima). Além disso, 14 países, fora o Brasil, investigam práticas ilegais promovidas pela Odebrecht.
Um terremoto político
Ao longo de cinco anos, a Lava Jato influenciou o impeachment de Dilma Rousseff, enfraqueceu o governo Michel Temer e contribuiu para a derrocada de velhos caciques do PT, MDB e PSDB. Em 2018, Lula, então favorito para vencer as eleições presidenciais, foi preso e teve a candidatura barrada. As investigações também fortaleceram um discurso antissistema que beneficiou a campanha de Bolsonaro.
Foto: picture-alliance/dpa/ZUMAPRESS/C.Faga
Críticas e revelações
A Lava Jato também acumulou acusações de parcialidade e de abusos em seus métodos. Em 2019, os procuradores da força-tarefa foram duramente criticados por tentarem criar uma fundação para gerenciar uma multa bilionária da Petrobras. No mesmo ano, conversas reveladas pelo site "The Intercept" apontaram suspeita de conluio entre Moro e os procuradores na condução dos processos, o que é proibido.