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Será que Hitler é um fenômeno só alemão?

Eva Usi (sm)17 de setembro de 2004

"Durante décadas, Hitler foi mostrado como um demônio, mas chegou o momento de encararmos como o ditador era na realidade". É o que diz o cineasta Oliver Hirschbiegel à DW-WORLD sobre seu último filme, "A Queda".

Sessenta anos após o fim do Terceiro Reich, o filme protagonizado por Bruno Ganz decifra o fenômeno Adolf HitlerFoto: 2004 Constantin Film, München
Cineasta Oliver HirschbiegelFoto: 2004 Constantin Film, München

A estréia internacional ocorreu no Festival de Cinema de Toronto, onde foram vendidos os direitos do filme a distribuidores do mundo inteiro. O diretor Oliver Hirschbiegel conversou com a DW-WORLD sobre as dificuldades de abordar um tema tão controverso e amargo para os alemães como a figura de Adolf Hitler.

DW-WORLD

: Como o senhor veio a dirigir este filme e como se sentiu diante do desafio de tratar este tema?

HIRSCHBIEGEL

: Bernd Eichinger (produtor e roteirista do filme) me falou deste projetos há dois anos, após ter visto e gostado do meu filme O Experimento, e pediu que eu assumisse a direção do seu novo projeto. No começo, achei que não ia funcionar, não por pensar que com o filme se quebraria um tabu, mas, sim, porque me parecia muito difícil representar Hitler como ele era na realidade, ou seja, fazê-lo reviver.

Mesmo assim acabei me inteirando do tema: li o livro em que Eichinger se baseou para criar o roteiro, além de outras fontes, como o filme Der letzte Akt (1955), de Georg Wilhelm Pabst. Neste filme, Albin Skoda interpreta o papel de Hitler de maneira muito estereotipada, mas mesmo assim há momentos em que dá para sentir o ditador como pessoa, como ser humano.

Juliane Köhler (Eva Braun), Bruno Ganz (Adolf Hitler) und Heino Ferch (Albert Speer)Foto: 2004 Constantin Film, München

Neste momento, percebi que era possível representar o ditador, apesar de Albin Skoda não ser parecido com Hitler. Quando ficou claro que quem faria o papel principal seria Bruno Ganz, um ator que tem uma grande semelhança física com a personagem, comecei a achar que poderia funcionar.

Qual a imagem que o senhor tinha de Adolf Hitler?

Como eu já tinha lido a extraordinária biografia escrita por Sebastian Haffner, já sabia bastante sobre Hitler. Também sabia que teria de abordá-lo de uma perspectiva muito ampla e que não bastaria apresentá-lo de maneira dogmática, com os clichês típicos, mas que seria necessário criar um retrato tridimensional da sua pessoa.

Por que só agora um filme deste tipo sobre Adolf Hitler? O cinema alemão não estava preparado para isso antes?

Roteiro se baseia no livro "Der Untergang", de Joachim Fest

Quem deu o primeiro impulso foi o historiador Joachim Fest, com o livro Der Untergang (A Queda), no qual ele descreve os últimos dias em que culminaram os 12 anos da ditadura nazista. Ele praticamente usou a estrutura de um roteiro. E acho que Bernd Eichinger foi o primeiro a atinar para isso e para a viabilidade de levá-lo à tela do cinema.

De que outras maneria teria sido possível aproximar-se desta complexidade histórica? Considero impossível mostrar os judeus nos campos de concentração... A magnitude do sofrimento e do desespero, a crueldade nos campos de concentração me inspiram um profundo respeito, de forma que não considero possível mostrar tudo isso. Do ponto de vista cinematográfico, creio que seja impossível representar a dimensão deste horror em um filme.

Se, como cineasta, faço um filme sobre o complexo tema do Terceiro Reich, sou obrigado a mostrar os judeus. É por isso que um filme dessa natureza é impossível para mim, e creio que outros cineastas também viram a mesma dificuldade.

O que o senhor e o produtor Bernd Eichinger pretendiam com a representação humana de Hitler?

Christian Berkel (Professor Schenck, médico na chancelaria do Reich)Foto: 2004 Constantin Film, München

Meu desejo é que acabemos com essa maneira ritualizada de encarar nossa própria história, conhecida na Alemanha pela expressão "Geschichtsaufarbeitung" (revisão e elaboração da história). Não devemos esconder nada, nem reduzir nada a rótulos como "monstro", "crueldade" e "horror".

Se nos levarmos a sério como povo de uma cultura antiga, então temos que ir a fundo, temos que trazer à luz o que está recôndito e nos fazer outras perguntas, ou seja, temos que parar com nuances e não de uma maneira quadrada. É evidente que o filme não pode dar respostas e nem esclarecer nada. Há 35 mil livros sobre a figura de Adolf Hitler, mas nenhum deles pode passar nem sequer uma noção de como este homem era na realidade.

Portanto, só podemos esboçar perguntas, e isso não significa necessariamente dar respostas, mas também não significa apresentar o ditador de forma inofensiva. Muito pelo contrário. Um dos fundamentos do nazismo foi a afirmação de que esses horríveis assassinatos foram cometidos porque as vítimas, os judeus, os poloneses ou russos, não mereciam ser considerados seres humanos, mas seres sem dignidade, sub-humanos.

Portanto, o pior erro seria dizer que Hitler não era um ser humano, pois isso seria um desagravo, uma desculpa. Isso criaria um mito em torno da figura de Adolf Hitler. Sempre me incomodou esta crença de que haveria algo de fascinante na figura do ditador. Hitler era um genocida que, com plena consciência, a todo momento tomou decisões que conduziram a uma catástrofe.

Hitler era um patriota enlouquecido, um traidor dos alemães ou um psicopata?

Adolf Hitler aos 14 anos, em 1904Foto: AP

Nada disso. Ele foi um homem de uma força de vontade monstruosa, provavelmente o político mais forte de seu tempo e um homem com uma ferrenha determinação destrutiva. É assim que eu imagino Hitler. Esta vontade destrutiva pode ser claramente observada ao longo de sua biografia.

Por que será que as pessoas se sentem fascinadas pela encarnação do mal? Há outros exemplos disso, como o famoso Hannibal Lecter.

Hannibal Lecter também é uma exceção e era de carne e osso, ainda que só tenha matado umas vinte ou trinta pessoas. O contrário sucedeu com Hitler e seus homens, que exterminaram milhões em função de uma visão, de uma idéia, por mais sórdida que fosse. Isso nos choca, pois desde o Iluminismo a civilização crê que a humanidade é boa, que os povos podem conviver em paz num contexto social saudável. Mas o que a História comprova é o contrário e isso dá medo na gente.

Christian Berkel (Professor Schenck) e André Hennicke (Oficial da SS Wilhelm Mohnke)Foto: 2004 Constantin Film, München

Como fenômeno individual, o mal desperta fascinação, mas quando toca a mim pessoalmente, ao meu povo, à minha nação e ao mundo, então a gente recusa assumir isso e enxergar a realidade, o que também é compreensível. Mesmo assim, temos que enfrentar esses fatos.

Após "A Queda" se espera na Alemanha uma série de filmes sobre o nazismo. Será que há um déficit a ser coberto?

Em se tratando de lançar questões sem paliativos, perguntas que ainda não foram feitas, definitivamente há um déficit a ser compensado. Espero que nosso filme seja o primeiro a abordar o tema desta maneira e que desencadeie a realização de outros trabalhos.

Este filme oferece elementos para resolver o trauma emocional dos alemães?

Acho que o filme não é mais que uma tentativa de lançar uma questão. É um apelo por uma nova forma de pensar e para sermos honestos conosco. É para continuarmos estudando e perguntando a quem viveu aquela época, para investigar até que ponto este foi um fenômeno alemão, ou seja, se ele também poderia ter ocorrido em outros países, ou se foi algo que só nós, alemães, poderíamos ter feito de maneira tão brutal e precisa.

O senhor disse que o filme é inovador, por ter rompido muitas regras do cinema, por não ter heróis, etc. Qual a sua expectativa para com a estréia internacional no Festival de Cinema de Toronto?

Vou a Toronto como quem atira no escuro, pois não posso prever a reação dos estrangeiros. Um estrangeiro tem, sem dúvida, mais facilidade de lidar com este fenômeno que um alemão. No exterior, o que predomina é essa imagem unidimensional de Hitler, visto como um demônio, como um monstro.

Não posso prognosticar nada, portanto. Só li alguns artigos da imprensa anglo-saxã, que parece ter entendido nossa abordagem do filme, o que me deixou bastante satisfeito.

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