Soldado que cruzou fronteira quer asilo, diz Coreia do Norte
16 de agosto de 2023
É a primeira vez que Pyongyang se pronuncia sobre o caso. Agência estatal diz que o americano Travis King estava desiludido com o racismo no Exército dos EUA. Para especialistas, trata-se de propaganda do regime.
"Durante as investigações, [o soldado] Travis King confessou que havia decidido vir para a RPDC [República Popular Democrática da Coreia, nome oficial do país] porque nutria ressentimentos contra maus-tratos desumanos e discriminação racial dentro do Exército dos EUA", disse a KCNA por meio de nota divulgada nesta quarta-feira (16/08).
"Ele também expressou sua vontade de buscar refúgio na RPDC ou em um terceiro país, dizendo que estava desiludido com a desigualdade na sociedade americana."
A agência estatal acrescentou que King "entrou ilegalmente no território" da Coreia do Norte, onde desde então "permanece sob o controle de soldados norte-coreanos".
Washington, por sua vez, disse não ter conseguido corroborar essa informação, acrescentando que ainda trabalha para trazer o soldado de volta ao país. Autoridades dos EUA disseram acreditar que King cruzou a fronteira intencionalmente e até agora se recusaram a classificá-lo como prisioneiro de guerra.
Alvo de processos disciplinares
King, 23, ingressou no Exército dos EUA em janeiro de 2021. Segundo o comando da força multinacional da ONU, que supervisiona o cumprimento do armistício entre as duas Coreias, ele atravessou a fronteira altamente fortificada em 18 de julho, "voluntariamente e sem autorização".
Alvo de dois processos disciplinares por parte do Exército americano, King tinha acabado de cumprir quase dois meses numa penitenciária na Coreia do Sul por envolvimento numa briga numa discoteca e um incidente com a polícia em Seul. Em 10 de julho, ele saiu da prisão para ser conduzido sob escolta ao aeroporto, de onde deveria ter sido repatriado à sua unidade de origem nos Estados Unidos.
Mas, em vez disso, King fugiu e conseguiu se juntar a um grupo de turistas que visitava a fronteira na zona desmilitarizada que separa as duas Coreias. As tentativas dos guardas sul-coreanos e americanos de detê-lo foram em vão.
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Possível moeda de troca
Soo Kim, especialista da consultoria LMI e antiga analista da CIA, disse à agência de notícias Associated Press que a notícia da KCNA "é 100% propaganda norte-coreana".
"King, como cidadão americano detido na Coreia do Norte, não tem influência sobre como a RPDC decide contar a sua narrativa", disse Soo Kim.
"Talvez o regime tente trocar a vida de King por concessões financeiras dos EUA. Muito provavelmente, as negociações não serão fáceis e os termos serão ditados por Pyongyang", disse a analista.
King é o primeiro americano detido na Coreia do Norte em quase cinco anos. O incidente ocorre num contexto de grande tensão entre o Ocidente e o líder norte-coreano, Kim Jong-un. Na terça-feira, o ministro de Defesa da Coreia do Norte acusou os EUA de estarem colocando a península coreana numa guerra nuclear iminente e descartou a possibilidade de solucionar o conflito com negociações.
Mãe de soldado apela por "tratamento humano"
Um porta-voz da família de King pediu às autoridades norte-coreanas que deixem o jovem falar com sua mãe e o tratem com humanidade.
"A Sra. Gates está ciente do 'relatório' de hoje da KCNA", disse Jonathan Franks, por meio de um comunicado, referindo-se à mãe do soldado. "As autoridades da RPDC são responsáveis pelo bem-estar de Travis King, e ela continua a apelar para que o tratem com humanidade."
Em agosto, o tio de King, Myron Gates, disse à ABC News que seu sobrinho, que é negro, estava sofrendo racismo durante seu destacamento militar e que depois de passar um tempo em uma prisão sul-coreana, ele não parecia mais a mesma pessoa.
O relatório da KCNA surge em meio a críticas da Coreia do Norte sobre o racismo e outros problemas sociais nos EUA, bem como às vésperas de uma reunião do Conselho de Segurança da ONU que deverá discutir os direitos humanos na Coreia do Norte na quinta-feira.
ip (Efe, Reuters, Lusa)
Guerra da Coreia, 70 anos depois
Combates na península coreana duraram mais de três anos. De um lado, o sul, apoiado pela ONU. Do outro, o norte, reforçado por China e URSS. Guerra acabou em 1953, com milhões de mortos e a divisão das Coreias cimentada.
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Fronteira da Guerra Fria
Em 27 de julho de 1950, as tropas da comunista Coreia do Norte atravessam o Paralelo 38, iniciando uma verdadeira campanha de ocupação. Em poucos dias, praticamente todo o país estava sob seu controle. É o início de uma guerra que durará 37 meses, custando 4,5 milhões de vidas humanas, segundo certas estimativas.
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Antecedentes
Depois de ser ocupada pelo Japão de 1910 a 1945, a Coreia estava dividida desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O território acima do 38º paralelo norte ficou sob controle soviético, o do sul, na mão dos EUA. Em agosto de 1948, Seul proclama a República da Coreia. Em reação, o general Kim Il-sung cria no norte a República Popular Democrática da Coreia, em 9 de setembro do mesmo ano.
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Reforço da ONU
Seguindo o avanço dos norte-coreanos sobre o Paralelo 38, a partir de julho de 1950 as Nações Unidas decidem dar apoio militar à Coreia do Sul, por pressão dos EUA. São enviados para a península 40 mil soldados de mais de 20 países, entre os quais 36 mil norte-americanos. A sorte parece ter virado: logo os Aliados conseguem ocupar quase todo o país.
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Codinome Operação Chromite
Em 15 de setembro de 1950, tropas ocidentais sob o comando do general Douglas MacArthur desembarcam perto da cidade portuária de Incheon, no sudoeste, capturando uma base central de suporte do Norte. Pouco depois, Seul está novamente na mão dos Aliados, que em outubro também ocupam Pyongyang. O fim da guerra parece próximo. Mas aí a China envia tropas de apoio aos norte-coreanos.
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Ajuda de Mao
Em meados de outubro iniciava-se a intervenção chinesa. De início, a ajuda parte apenas de unidades de pequeno porte. No final do mês ocorre a primeira mobilização em grande escala na Coreia do Norte do "exército de voluntários" de Mao. Em 5 de dezembro, Pyongyang – única capital comunista ocupada por tropas ocidentais durante a Guerra Fria – está novamente nas mãos de norte-coreanos e chineses.
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Pró e contra a bomba atômica
Em janeiro de 1951 começa uma grande ofensiva da Coreia do Norte, com apoio chinês. Cerca de 400 mil chineses e 100 mil norte-coreanos forçam as tropas aliadas a recuar fortemente. Em abril, o general MacArthur é destituído de seu posto, depois que o presidente Harry Truman lhe ordenara usar bombas atômicas contra a China. Seu sucessor é o general Matthew B. Ridgway.
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Guerra de exaustão
Em meados de 1951, mais ou menos na altura da linha de demarcação que separava o Norte e o Sul antes da guerra, as forças oponentes chegam a um impasse. A partir daí, começa uma encarniçada guerra de exaustão, que durará até o fim das operações de combate, dois anos mais tarde – embora as negociações de paz já tivessem sido iniciadas em julho de 1951.
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Batalha de ideologias
O conflito entre as Coreias é considerado a primeira "guerra por procuração" entre o Ocidente capitalista e o Oriente comunista. A maior parte dos soldados lutando nas tropas da ONU vinha dos Estados Unidos. No lado oposto, os norte-coreanos contaram com o reforço de centenas de milhares de chineses e russos.
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Coreia do Norte em ruínas
Desde o início, foi uma guerra de ataques aéreos e bombardeios. Durante os três anos de combates, as forças aéreas das Nações Unidas realizaram mais de 1 milhão de operações. Ao todo, os americanos lançaram cerca de 450 mil toneladas de bombas, inclusive de napalm, sobre a Coreia do Norte. A destruição foi extensa: ao fim da guerra, quase todas grandes cidades estavam arrasadas.
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Estimativas conflitantes
Quando, em 1953, as tropas aliadas se retiram da península coreana, o saldo é de milhões de mortos. Os dados sobre o número de soldados caídos são conflitantes. Calcula-se que morreram cerca de meio milhão de militares coreanos, assim como 400 mil chineses. Os Aliados registram 40 mil vítimas, 90% delas americanos.
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Troca de prisioneiros
Ainda durante os combates, de meados de maio a início de abril de 1953, ocorreu a primeira troca de presos entre os dois lados. Até o fim do ano, mais detentos seriam repatriados. A ONU devolveu mais de 75 mil norte-coreanos e quase 6.700 chineses. O outro lado soltou 13.500 pessoas, entre as quais 8.300 sul-coreanos e 3.700 soldados dos EUA.
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Cessar-fogo
Após mais de dois anos, as negociações de cessar-fogo iniciadas em 10 de julho de 1951 culminam no Armistício de Panmunjom. A divisão da península está sedimentada: o 38º paralelo norte é definido com fronteira entre as Coreias do Norte e do Sul. Mas como um tratado de paz nunca foi assinado, do ponto de vista do direito internacional os dois países se encontram até hoje em estado de guerra.
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Terra de ninguém
O idílio na cidade fronteiriça de Panmunjom é enganoso. Até hoje, a fronteira ao longo do Paralelo 38 é a mais rigorosamente vigiada do mundo. Ao longo da linha estipulada no acordo de armistício de 1953, o Norte e o Sul são separados por uma zona desmilitarizada de cerca de 250 quilômetros de extensão e 4 quilômetros de largura. Aqui, soldados de ambos os lados se defrontam diariamente.