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Sonhos negros

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
15 de setembro de 2022

Críticas à negritude da protagonista da nova versão de "A Pequena Sereia" evidenciam uma das violências mais abjetas do racismo: tentar impedir pessoas negras de sonhar. Sem representatividade não há transformação.

A atriz Halle Bailey interpreta Ariel em live-action de "A Pequena Sereia"Foto: Xavier Collin/Image Press Agency/NurPhoto/IMAGO

Nunca imaginei que escreveria aqui sobre a emoção que senti ao ver um vídeo no TikTok. Não que eu seja avessa à essa rede social – embora entenda pouco sobre como ela funciona e desconfie de qualquer mensagem cujo conteúdo possa ser resumido em até 30 segundos. Mas nunca imaginei que a emoção que viesse a sentir com qualquer um desses vídeos pudesse ser compartilhada neste espaço.

Pois bem, esse dia chegou.

O vídeo a que me refiro é o de meninas negras estadunidenses, de diferentes idades, se maravilhando ao assistir ao teaser do live-action de A Pequena Sereia, previsto para estrear em maio de 2023. E o motivo do maravilhamento é muito simples: assim como as meninas embevecidas, a Ariel do filme é negra. Tem uma garotinha de pouco mais de 3 anos que chama a mãe para a ver a novidade. Meninas de 7, 8 anos, pré-adolescentes, e até mesmo uma moça adulta ficaram entre o riso, o choro e o êxtase ao verem a atriz Halle Bailey com seus longos dreads vermelhos e sua calda esmeralda. "Ela é como eu", disse uma das meninas.

Uma alegria absolutamente singela e, ao mesmo tempo, profundamente transformadora. Meninas negras estão felizes porque podem imaginar a si mesmas como protagonistas. Uma possibilidade que foi historicamente negada nesse universo dos contos de fadas. Dificilmente as histórias que ouvimos durante a infância e que começam com "era uma vez" tratam da vida de meninas e meninos de pele escura e cabelos crespos e cacheados.

Se o "faz de conta" foi uma brincadeira que permitiu o exercício da imaginação para muitas crianças, para outras milhares, essa brincadeira sempre vem com limitações ou interditos. E tem muita gente que continua achando que essas limitações devem permanecer. Afinal de contas, "onde já se viu sereia negra"?

Esse foi um dos muitos questionamentos que apareceram em 2021, quando a Disney anunciou a protagonista da nova versão de a A Pequena Sereia seria negra. Agora, com a divulgação do teaser, as críticas vieram numa espécie de tsunami, contabilizando milhões de dislikes vindos de diferentes partes do mundo. Dentre esses milhões de pessoas, muitos se dizem decepcionados com a falta de fidedignidade do live-action quando comparado à animação de 1989, também produzida pela Disney. Essa não seria uma postura racista, defendem-se os desgostosos menos reacionários. O problema está em mudar a imagem que foi construída sobre Ariel e o seu universo subaquático.

Não sei se por ingenuidade, dissimulação, ou se apenas pelo exercício do privilégio da supremacia branca, mas a onda de críticas à negritude de Ariel nos mostra que uma das violências mais abjetas do racismo está em tentar impedir as pessoas de sonhar – principalmente se as pessoas em questão forem negras. Não se pode ser princesa, não se pode ser sereia, e só muito recentemente foi possível virar super-herói.

Somos talhados a aprender desde cedo que "Narciso acha feio o que não é espelho".  E Narciso, como sabemos, é um homem branco.

A estrutura racista que nos ordena, inviabiliza e limita os sonhos de crianças não brancas, lembrando-as a todo momento que nem no universo da imaginação elas são bem-vindas. Não se elas se imaginarem como são. E mais: essa mesma estrutura cria e educa crianças brancas para só enxergarem a si mesmas, como se o mundo fosse um grande espelho. Sem dúvida, perdemos todos. Mas, como sempre ocorre quando o racismo entra em jogo, há quem perca menos e quem perca mais.

Experimentar os anos iniciais da nossa construção como ser humano sendo ensinados que existe apenas uma forma de ser belo, uma forma de ser valente, uma forma de ser amado, é uma das maneiras mais eficazes de manter as coisas como elas estão: ordenadas pelo racismo. Por isso, mesmo que sozinha a representatividade não mude a ordem das coisas, sem ela não há transformação possível.

Então, é preciso sonhar maior. O racismo nos obriga a sonhar a própria ideia do sonho.

Ainda bem que temos bons e grandes sonhadores.

No Brasil recente, o cineasta Gabriel Martins sonhou alto. E sonhou mais de uma vez. E deste sonho dentro do sonho, escreveu e dirigiu o filme Marte Um, uma obra de arte que é tão singela e transformadora como a felicidade das meninas negras dos Estados Unidos ao verem o rosto de Halle Bailey na personagem Ariel. Porque, como todo sonho, ele mostra o real, o imaginado e o caminho que liga essas duas dimensões.

E é importante dizer que Gabriel Martins faz parte de uma linhagem de sonhadores/as. Ele não caminha só. Nunca caminhamos

Apesar dos pesares, as mãos ainda se entrelaçam nos trajetos. E o impossível pode ser sonhado e vivido.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Negros Trópicos

Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.

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