Caso os ministros do STF aceitem argumentos do Ministério Público, deputado pode se tornar primeiro réu da operação com foro especial. Na Câmara, processo de cassação avança após meses de adiamentos e manobras.
Anúncio
O Supremo Tribunal Federal (STF) vai julgar nesta quarta-feira (2/3) se aceita a denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB). Caso os ministros concordem com o teor das acusações, o deputado vai se tornar réu – o primeiro acusado da Lava Jato com foro especial.
A denúncia aponta que o deputado recebeu propina e 5 milhões de dólares e pede que ele seja julgado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A expectativa é que a discussão no STF se estenda por no mínimo duas sessões.
A análise da denúncia pelo STF acontece enquanto Cunha está passando por um momento delicado na Câmara. Na noite de terça-feira, o Conselho de Ética da Casa votou por dar prosseguimento a um pedido de cassação contra o deputado. Caso o STF também decida prosseguir com a denúncia, será a segunda derrota de Cunha em uma semana.
Na segunda-feira, a defesa do deputado pediu para que o Tribunal adiasse a análise das acusações de Janot, argumentando que ainda estão pendentes de julgamento dois "agravos regimentais", ou recursos, que pediam mais prazo para a sua defesa. O STF acabou negando o pedido.
Denúncia
Cunha foi denunciado em agosto por envolvimento no Petrolão. A acusação é baseada as delações do lobista Julio Camargo e do operador Fernando Baiano, que afirmaram que Cunha cobrou propina de 5 milhões de reais em um negócio da Petrobras com a Samsung que envolvia o aluguel de sondas marítimas.
Na segunda metade do ano passado, foram divulgados vários documentos, entre cópias de passaportes, gastos de cartões de crédito e extratos que apontavam a ligação de Cunha e sua mulher, a jornalista Cláudia Cruz, com quatro contas não declaradas na Suíça. As autoridades do país europeu bloquearam mais de 9 milhões de reais depositados nessas contas.
Além da denúncia, Janot também entrou com um pedido para afastar Cunha da Câmara. Apresentado em dezembro, o texto elenca 11 condutas de Cunha para justificar o pedido, entre elas a acusação de que Cunha age para "constranger e intimidar parlamentares, réus colaboradores, advogados e agentes públicos, com o objetivo de embaraçar e retardar investigações contra si".
Apesar do desgaste causado pelos pedidos, Cunha vem se mantendo no cargo desde então. Na semana passada, ele disse que tem "total" condição de continuar a presidir a Câmara mesmo se virar réu. "Já fui réu em outra ação aceita pelo Supremo em 2013. O Supremo decidiu por 5 a 3. E depois fui absolvido por unanimidade. Todo mundo tem a presunção. Dou o meu próprio exemplo", afirmou para jornalistas, em Brasília.
Cassação
O processo de cassação contra Cunha no Conselho de Ética da Câmara finalmente avançou na noite e segunda-feira, após cinco meses de manobras de aliados de Cunha para retardar o rito. Por 11 votos a 10, os membros do Conselho decidiram por dar prosseguimento à ação. O placar inicial apontou um empate. Coube ao presidente da comissão, José Carlos Araújo (PSD-BA), desempatar em favor da continuidade do processo.
Os deputados que protocolaram o pedido de cassação argumentam que Cunha mentiu durante uma audiência da CPI da Petrobras quando declarou não possuir contas no exterior.
Ao longo do processo, aliados de Cunha na comissão conseguiram derrubar o primeiro relator do caso, anular a primeira votação e tumultuar diversas sessões com o objetivo de sabotar o processo. Agora, com o prosseguimento da ação, a estratégia parece ter se voltado para mudar a natureza de uma eventual punição contra Cunha. Em vez da cassação, os deputados querem que ele receba apenas uma censura ou uma suspensão.
A manobra já foi colocada em marcha durante a votação do relatório da comissão. O documento aprovado ontem retirou as acusações mais pesadas contra Cunha envolvendo o Petrolão e deixou apenas a acusação de que o deputado mentiu pra a CPI.
Na segunda-feira, pesquisa Datafolha apontou que 76% defendem que Cunha renuncie à Presidência da Câmara, enquanto apenas 12% querem que ele continue no cargo.
Entenda a Operação Lava Jato
A Polícia Federal apura, desde 2014, um esquema bilionário de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. Entenda a maior investigação sobre corrupção já conduzida no país.
Foto: AFP/Getty Images
O início
A Operação Lava Jato foi deflagrada pela Polícia Federal em 17 de março de 2014. Começou investigando um esquema de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro e descobriu a existência de uma imensa rede de corrupção envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras do país e políticos. O nome vem de um posto de gasolina em Brasília, um dos alvos da PF no primeiro dia de operação.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Brandt
O esquema
Executivos da Petrobras cobravam propina de empreiteiras para, em troca, facilitar as negociações dessas empresas com a estatal. Os contratos eram superfaturados, o que permitia o desvio de verbas dos cofres públicos a lobistas e doleiros, os chamados operadores do esquema. Eles, por sua vez, eram encarregados de lavar o dinheiro e repassá-lo a uma série de políticos e funcionários públicos.
Foto: Reuters/S. Moraes
As figuras-chave
O esquema na Petrobras se concentrava em três diretorias: de abastecimento, então comandada por Paulo Roberto Costa; de serviços, sob direção de Renato Duque; e internacional, cujo diretor era Nestor Cerveró. Cada área tinha seus operadores para distribuir o dinheiro. Um deles era o doleiro Alberto Youssef (foto), que se tornou uma das figuras centrais da trama. Todos os citados foram condenados.
Foto: imago/Fotoarena
As empreiteiras
As grandes construtoras do país formaram uma espécie de cartel: decidiam entre si quem participaria de determinadas licitações da Petrobras e combinavam os preços das obras. Os executivos da estatal, por sua vez, garantiam que apenas o cartel fosse convidado para as licitações. Entre as empresas investigadas estão Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa. Vários executivos foram condenados.
Foto: Reuters/P. Whitaker
Os políticos
O núcleo político era formado por parlamentares de diferentes partidos, responsáveis pela indicação dos diretores da Petrobras que sustentavam a rede de corrupção dentro da estatal. Os políticos envolvidos recebiam propina em porcentagens que variavam de 1% a 5% do valor dos contratos, segundo os investigadores. O dinheiro foi usado, por exemplo, para financiar campanhas eleitorais.
Foto: J. Sorges
De Cunha a Dirceu...
A investigação só entrou no mundo político em 2015, quando a Lava Jato foi autorizada a apurar mais de 50 nomes, entre deputados, senadores e governadores de vários partidos. Desde então, viraram alvo de investigação políticos como os ex-parlamentares Eduardo Cunha (foto) e Delcídio do Amaral, ambos cassados, os senadores Renan Calheiros, Fernando Collor e o ex-ministro José Dirceu.
Foto: Reuters/A. Machado
... e Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é réu em dez processos relacionados à Lava Jato, sendo acusado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução da Justiça. As denúncias indicam que Lula teria recebido benefícios das empreiteiras OAS e Odebrecht, envolvendo imóveis no Guarujá e São Bernardo do Campo. Em 2018, ele foi preso e teve uma nova candidatura à Presidência barrada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Dana
As prisões
A Lava Jato quebrou tabus no Brasil ao encarcerar altos executivos de empresas e importantes figuras políticas. Entre investigados e aqueles já condenados pela Justiça, estão o executivo Marcelo Odebrecht, ex-presidente da Odebrecht; Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara; Sérgio Cabral, ex-governador do Rio; os ex-ministros José Dirceu (foto) e Antonio Palocci, entre outros.
Foto: picture-alliance/dpa/EPA/H. Alves
As delações
Os acordos de delação premiada são considerados a força-motriz da operação. Depoimentos como o de Marcelo Odebrecht (foto) chegam com potencial para impactar fortemente a investigação. O acordo funciona assim: de um lado, os delatores se comprometem a fornecer provas e contar o que sabem sobre os crimes, além de devolver os bens adquiridos ilegalmente; de outro, a Justiça reduz suas penas.
Foto: Getty Images/AFP/H. Andrey
O juiz
Responsável pela Lava Jato na 1° instância, o ex-juiz federal Sergio Moro logo ganhou notoriedade. Em manifestações, foi ovacionado pelo povo e chegou a ser chamado de "herói nacional". Mas também foi acusado de agir com parcialidade política. Em 2018, deixou o cargo e aceitou ser ministro do presidente Jair Bolsonaro, cuja candidatura foi beneficiada pela prisão de Lula no ano anterior.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Expansão internacional
Se começou num posto de gasolina em Brasília, a Lava Jato ganhou proporções internacionais com o aprofundamento das investigações. Segundo dados do Ministério Público Federal levantados a pedido da DW Brasil, a investigação já conta com a cooperação de pelo menos outros 40 países (veja no gráfico acima). Além disso, 14 países, fora o Brasil, investigam práticas ilegais promovidas pela Odebrecht.
Um terremoto político
Ao longo de cinco anos, a Lava Jato influenciou o impeachment de Dilma Rousseff, enfraqueceu o governo Michel Temer e contribuiu para a derrocada de velhos caciques do PT, MDB e PSDB. Em 2018, Lula, então favorito para vencer as eleições presidenciais, foi preso e teve a candidatura barrada. As investigações também fortaleceram um discurso antissistema que beneficiou a campanha de Bolsonaro.
Foto: picture-alliance/dpa/ZUMAPRESS/C.Faga
Críticas e revelações
A Lava Jato também acumulou acusações de parcialidade e de abusos em seus métodos. Em 2019, os procuradores da força-tarefa foram duramente criticados por tentarem criar uma fundação para gerenciar uma multa bilionária da Petrobras. No mesmo ano, conversas reveladas pelo site "The Intercept" apontaram suspeita de conluio entre Moro e os procuradores na condução dos processos, o que é proibido.