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TeatroBrasil

Teatro Oficina apresenta "Sertões" inédito

Augusto Valente
25 de maio de 2004

A promessa era a pré-estreia da quarta parte de "Os Sertões" de Zé Celso em Recklinghausen. Que se revelou um ensaio aberto: o privilégio de vivenciar um "work in progress" do legendário diretor brasileiro.

Zé Celso (dir.) é Antônio ConselheiroFoto: LENISE PINHEIRO

Os Sertões 4: A Luta revive o momento quando – a partir da insignificante disputa por uma entrega de mercadoria não cumprida – se prenuncia o massacre inexorável do povoado liderado por Antônio Conselheiro. O laço se aperta, a tragédia vai cumprindo seu arco. Irrompe a luta, o entusiasmo da guerra dá lugar ao delírio da guerra, que cede ao horror da guerra; falta total de sentido, deserção e morte.

Claro, o Canudos de José Celso Martinez Corrêa não é "só" Canudos. No final (temporário) da saga, quem sobe à cena é uma personagem de Shakespeare, para breve monólogo diante de uma bigorna (quem sabe, feita do mesmo aço da região do Rio Ruhr que deu o golpe de misericórdia à resistência de Canudos?). Hamlet comenta os destroços desolados de uma batalha – que também são "fundação de um novo gênesis, uma nova criação". Black-out.

Na cozinha do bruxo

Terminado o ensaio aberto de A Luta, domingo, 23 de maio de 2004, no Festival de Teatro de Recklinghausen, o diretor propôs: "Hoje quem vai ser aplaudido é o público. E à maneira alemã, entrando no palco um a um". Ele, que estivera o tempo todo em cena, dirigindo e "sendo" Antônio Conselheiro, justificou: "Eles é que foram os verdadeiros heróis da noite", por atravessar aquelas três horas e meia de trabalhos, junto com os mais de 40 atores, músicos, artistas de vídeo e luz, e técnicos do Teatro Oficina Uzyna Uzona.

Zé Celso começara a noite com uma justificativa: a organização do festival havia anunciado uma "pré-estréia mundial", e o que o Oficina tinha a oferecer era um ensaio geral. Os atores estariam nervosos, alguns ainda de texto na mão, havia canções não compostas, cenas só esboçadas, questões técnicas por decidir.

Contudo o rosto dos espectadores que ficaram até o fim para os "seus" aplausos não deixava dúvidas: todos compreendiam ter participado de algo ainda mais raro do que a aura de exclusividade, essa virgindade mágica de uma estréia. Seu prêmio fora penetrar na cozinha de mistérios do Teatro Oficina, poder olhar para dentro do caldeirão do bruxo teatral Zé Celso, farejar suas ervas mágicas.

Ensaios abertos como esse deveriam acontecer com mais freqüência!

Teatro terreiro

Em certa altura, o homem de barba e cabeleira longa e branca interrompeu o ensaio, apelando para um intérprete: "Explique que os atores estão inseguros. Peça à platéia para gritar o ‘viva’ sempre junto conosco, nesta cena. Para dar apoio". E súbito tudo funcionou, uma intensidade dionisíaca se estabeleceu.

Magia? Mas técnica também. Quem prestou atenção, possivelmente vislumbrou um dos "segredos" do Oficina. Sem dúvida, a insistência no "teatro de participação" continua, quase 50 anos depois, desconcertando, provocando, ofendendo até, plateias e críticos. Porém num nível mais técnico, ela é um dos recursos certeiros com que se arrancam as performances arrepiantes dessa trupe que vai – literalmente – dos 9 aos 90 anos de idade.

Agora se entende melhor o porquê do "teatro terreiro", de que tanto fala Zé Celso. Em forma e sentido, ele tinha que se afastar tanto da "jaula" do palco italiano – com suas duas áreas rigidamente definidas –, quanto do foco concêntrico da arena. No "terreiro", os olhares, as ações transitam entre vários pólos e em todas as direções, reverberando, multiplicando-se. E de reflexão em refração cria-se um emaranhado de forças vivas, um transe, imprevisível feedback de intensidades, e – com o perdão da má palavra – energias.

Bíblia da brasilidade

Zé Celso nasceu em 1937 e – se alguém merece esse título – é lenda viva do teatro nacional. Impossível escrever uma história da modernidade brasileira sem mencioná-lo. Foi co-fundador do (primeiro) Teatro Oficina em 1958, deslanchou o Tropicalismo com a montagem de O Rei da Vela de Oswald de Andrade em 1967, fez agitação política com Roda Viva, no ano seguinte. E estes são apenas os primeiros picos na trajetória quase sempre escandalosa do homem que agora dirige o "quarto" Oficina (Uzyna Uzona).

Fonte central de seus Os Sertões é a obra homônima publicada por Euclides da Cunha em 1902. Sob o pretexto de examinar a Guerra de Canudos (Bahia, 1896-1897), ela traça um perfil sem precedentes – ainda que ideologicamente tingido pelo positivismo e o darwinismo – do povo brasileiro. É considerada a "bíblia da brasilidade". O ciclo de Zé Celso tem três partes prontas, até agora: A Terra, O Homem 1 e O Homem 2, num total de cerca de 16 horas.

Faces da dualidade

A mina Auguste Victoria, onde foi reproduzido o Teatro OficinaFoto: Ruhrfestspiele

A Luta também será subdividida em duas noites. No ensaio aberto na mina Auguste Victoria de Recklinghausen (região do vale do Rio Ruhr), transformada em réplica do Teatro Oficina, ela se iniciou com uma confrontação entre a milícia armada do governo e os adeptos de Antônio Conselheiro. De maneira inesperada, as forças se invertem, e logo os frágeis sertanejos é que cercam os soldados, transmutando a manobra de guerra em jogo de amor.

Para expor a transação comercial fatídica que desencadeará a Guerra de Canudos, o autor/diretor vai buscar duas personagens de Bertolt Brecht: Schlink e Garga, de Na Selva das Cidades (1924). As duplas povoam, aliás, essa montagem: os dois doentes, os dois cegos sodomitas que guiam a milícia, as duas Compadecidas à frente de Canudos, as duas vacas puxando o carro do médico. É a dualidade ambígua posta em cena, ao mesmo tempo símbolo de antagonismo sangrento e de colaboração.

A estética da tragicomediorgya

Mas Os Sertões é só o centro do novelo, de onde Zé Celso desfia sua rede de (auto-)referências. O tédio dos soldados perdidos no sertão suscita uma alusão a Esperando Godot (a peça de 1953 de Samuel Beckett). Um jogo de futebol é o veículo para representar a tensão crescente em torno da cidade condenada.

Assim como as partes anteriores do ciclo, A Luta emprega uma linguagem física e visual eloquente. Não por acaso, são os meninos mais jovens da companhia a representar os militares: bela e macabra, a combinação de armas de fogo, uniformes impecáveis, delicadeza física e expressões cruéis nos remete infalivelmente às ruandas, israéis e sudãos contemporâneos.

E, após as batalhas repetidas, os mortos vão se proliferando no chão do terreiro teatral, na forma de marcas de giz: o contorno do corpo para cada sertanejo caído, uma cruz para cada soldado. De uma inocência transgressora, incendiária é também a evocação dos vaga-lumes da cidade de Uauá: um enxame de meninas que entram correndo, saltitando, fazendo faiscar isqueiros na escuridão.

A Luta continuará in progress no Oficina. Mas nessa generosa amostra para o público alemão já se pôde vislumbrar um épico de dimensões shakespeareanas. Atuado, declamado em coro (como na tragédia grega) ou cantado, seu texto em rimas aciona todos os registros da expressão humana, da safadeza macunaímica ao lirismo mais sublime. Pois a tragicomediorgya de Zé Celso vive disso: uma percepção do mundo que não conhece tabus ou fronteiras.

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