Enquanto EUA e Irã trocam farpas – e mísseis – na região, Merkel e Putin organizaram um encontro em Moscou. Mas uma mudança de equilíbrio no Oriente Médio pode forçar Berlim a confiar em russos, na busca por soluções.
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A visita oficial a Moscou da chanceler federal da Alemanha, Angela Merkel, não poderia ocorrer num momento mais dramático. Só na segunda semana de 2020, o Irã e os Estados Unidos se atacaram em solo iraquiano, o governo iraniano anunciou a saída do acordo nuclear e a Turquia enviou tropas à Líbia.
Certamente, motivos suficientes para o presidente russo, Vladimir Putin, convidar Merkel ao Kremlin para um encontro neste sábado (11/01). Os conflitos entre Irã e EUA estarão no topo da agenda da reunião, e ambos também discutirão sobre a Líbia, Síria e Líbano, segundo seus respectivos porta-vozes.
Tradicionalmente Alemanha e Rússia possuem laços econômicos profundos e, entre os líderes da Otan e da Europa, Merkel tem sido uma visita bem-vinda em Moscou. O papel da Rússia na crise da Ucrânia e a anexação da península da Crimeia pela Rússia em 2014, no entanto, causaram sérias cisões entre os dois países, que ainda não curaram.
Divididos pela Ucrânia, reunidos por Trump
Contudo o analista Alexander Baunov, observador político do Centro Carnegie de Moscou, afirma que "a Ucrânia deixou de ser tão tóxica" para as relações entre Moscou e Berlim. Ele aponta os recentes progressos na resolução da crise na Ucrânia sob o novo presidente Volodimir Zelenski como indicador de um degelo político.
Merkel e Putin podem ter se afastado devido à crise na Ucrânia, mas estão se reaproximando "pela unilateralidade e imprevisibilidade das ações dos EUA", prossegue, citando como exemplo as sanções americanas contra o gasoduto russo-alemão Nord Stream 2 em 2019 e a recente decisão do presidente dos EUA, Donald Trump, de mandar assassinar o comandante militar iraniano Qassim Soleimani.
O Ministério do Exterior da Rússia classificou as ações dos EUA contra Soleimani como "imprudentes", enquanto o porta-voz do órgão homólogo alemão, Rainer Breul, ressaltou que Berlim não teve acesso a "informações que nos permitissem crer que o ataque dos EUA foi ancorado em leis internacionais".
Analistas russos afirmaram que, após as ações americanas, Merkel e Putin agora compartilham o objetivo de impedir uma nova escalada de combates no Oriente Médio.
"A Rússia está interessada em garantir que o que está ocorrendo no Oriente Médio não tenha consequências mais amplas e sangrentas", explica Andrei Ontikov, especialista em Oriente Médio. A Alemanha e o resto da Europa podem desempenhar um papel positivo em medidas que diminuam as tensões na região, "portanto é claro que a Rússia precisa coordenar suas políticas, inclusive com a Europa".
Embora Putin possa usar o encontro com Merkel para apresentar uma frente unida com a Alemanha e posicionar a Rússia como força mediadora no Oriente Médio, Berlim também tem refletido em como aproveitar ao máximo a influência do chefe de Estado russo no Oriente Médio.
A influência da Rússia na região aumentou desde que ela decidiu participar da guerra na Síria, em 2015. As forças russas estão lutando ao lado do Irã para apoiar o presidente sírio Bashar al-Assad, visto em Moscou como um garante da contínua influência russa no Oriente Médio. Putin também tem se coordenado estreitamente sobre a Síria com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.
Em entrevista à DW, o encarregado de política externa do Partido Verde alemão, Omid Nouripour, disse duvidar da influência do Kremlin no Irã. "Putin finge que tem influência. Então, espero que a premiê alemã o force a convencer os iranianos a não tomarem medidas retaliatórias." Segundo Nouripour, uma retaliação iraniana levaria a um incremento de violência na região.
Por sua vez, retratando os EUA como parceiro não confiável, principalmente após a decisão de Trump de deixar o acordo nuclear com o Irã em 2018, o Kremlin tenta constantemente convencer a Alemanha e a Europa a estreitarem os laços com a Rússia. Desde a saída americana, a Alemanha e a Rússia têm pressionado para salvar o acordo, até mesmo após o abandono do Irã, no último domingo.
Negociações de paz em Berlim
Moscou e Berlim também intercederam pelo fim do conflito na Líbia. Os combates nas cidades de Trípoli e Sirte aumentaram recentemente, à medida que o Exército Nacional da Líbia, baseado no leste do país e sob o comando do ex-general Khalifa Haftar, avança contra forças leais ao Governo do Acordo Nacional, a administração provisória da Líbia. Berlim tem alertado que a situação pode se tornar "uma segunda Síria".
A Alemanha se ofereceu para sediar uma conferência de paz entre as partes conflitantes. As negociações de Berlim podem ocorrer nas próximas semanas, embora uma data ainda não tenha sido definida.
Jürgen Hardt, porta-voz para política externa do partido de Merkel, a União Democrata Cristã (CDU), comentou que, se a conferência realmente for realizada, seria um "grande sucesso diplomático". Ele disse esperar que Merkel dê ênfase à iniciativa em seu encontro em Moscou, pois "ainda temos um longo caminho a percorrer antes de progredir".
Na quarta-feira, Putin emitiu uma declaração conjunta com Erdogan em que expressa apoio à conferência de paz na Alemanha, embora os líderes tenham dito que resultados só poderiam ser alcançados "com o envolvimento e o compromisso dos líbios e dos países vizinhos".
Os dois líderes também pediram um cessar-fogo a partir de domingo. Moscou nunca deixou oficialmente claro de que lado está no conflito líbio, embora tenha havido relatos da mídia de que mercenários russos estariam lutando ao lado do ex-general Haftar. No início do ano, a Turquia envidou tropas para apoiar o governo provisório líbio apoiado pela ONU.
Para a Alemanha, o encontro em Moscou pode mostrar quanta influência diplomática Merkel realmente possui em relação à Líbia e ao Oriente Médio. De acordo com Fyodor Lukianov, do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia, Putin está claramente no comando das negociações na região: "A Alemanha tem sido um agente passivo, um observador à margem. A Rússia, por outro lado, é um ator importante no Oriente Médio."
O que se iniciou com protestos pacíficos em 2011 virou uma guerra civil brutal que já matou centenas de milhares de pessoas e fez milhões de refugiados. Reveja os principais acontecimentos.
Foto: Reuters/Stringer
2011: O início
Em 15 de março de 2011, protestos pacíficos contra a detenção de jovens acusados de fazer pichações antigoverno em sua escola, na cidade de Daraa, são reprimidos por forças de segurança, que abrem fogo contra manifestantes desarmados, matando quatro. Os protestos continuam por vários dias, fazendo 60 mortos e se espalham por todo o país. Segue-se um período de repressão violenta.
Foto: Anwar Amro/AFP/Getty Images
2011/2012: Isolamento internacional
O ex-presidente Barack Obama insta o presidente Bashar al-Assad a renunciar, e os EUA anunciam sanções a Assad em maio e congelam bens do governo sírio nos EUA em agosto de 2011. A União Europeia também anuncia sanções, em setembro. Em novembro, a Liga Árabe suspende a Síria e impõe sanções ao regime. Também a Turquia anuncia uma série de medidas, incluindo sanções, em dezembro.
Foto: AP
2012: Observadores internacionais desistem
Em dezembro de 2011, a Síria permite a entrada de observadores da Liga Árabe para monitorar a retirada de tropas e armas de áreas civis. A missão é suspensa em janeiro de 2012. Em fevereiro, os EUA fecham sua embaixada em Damasco. Em abril de 2012, chegam observadores da ONU, que partem dois meses depois por falta de segurança.
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2013: Ataque com gás
Em março, um ataque com gás mata 26 pessoas, ao menos a metade deles soldados do governo, na cidade de Khan al-Assal. Investigação da ONU conclui que foi usado gás sarin. Em agosto, outro ataque com gás mata centenas em Ghouta Oriental, um subúrbio de Damasco controlado pelos rebeldes. A ONU afirma que mísseis com gás sarin foram lançados em áreas civis. Os EUA e outros países culpam regime sírio.
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2013: Destruição de armas químicas
Em agosto, investigadores da ONU chegam à Síria para averiguar o uso de armas químicas, em meio a denúncias de médicos e ativistas. EUA afirmam que 1.429 pessoas morreram num ataque, e Obama pede ao Congresso autorização para ação militar. Em setembro, o Conselho de Segurança da ONU ameaça usar a força e, em outubro, Damasco inicia a destruição de seu arsenal declarado de armas químicas.
Foto: AFP/Getty Images
2014: EUA atacam "Estado Islâmico"
Em setembro, os EUA iniciam ataques aéreos a alvos do "Estado Islâmico" na Síria. Em outubro, o mediador da ONU, Staffan de Mistura, começa a negociar uma trégua ao redor de Aleppo, mas o plano fracassa meses depois.
Foto: picture-alliance/AP Photo/V. Ghirda
2015: Rússia entra no conflito
Em setembro, a Rússia, que desde o início fornecera ajuda militar ao governo sírio nos bastidores, entra ativamente no conflito, bombardeando opositores do regime. A ajuda se mostra decisiva, e a guerra civil passa a pender para o lado de Assad, que nos meses seguintes recupera território perdido para os rebeldes.
Foto: Reuters/Rurtr
2016: Governo controla Aleppo
A ONU e a Opac afirmam que tanto militares sírios quanto o "Estado Islâmico" usaram gás em ataques a opositores. O ano é marcado por várias tentativas de tréguas. Em setembro, a cidade de Aleppo é alvo de 200 ataques aéreos por forças pró-Assad num fim de semana. Em dezembro, as forças governamentais assumem controle de Aleppo, encerrando quatro anos de domínio dos rebeldes.
Foto: Getty Images/AFP/G. Ourfalian
2017: Ataque em Idlib
Em fevereiro, Rússia e China vetam resolução do Conselho de Segurança da ONU pedindo sanções ao governo sírio pelo uso de armas químicas. Em abril, ao menos 58 pessoas morrem na província de Idlib, dominada pelos rebeldes, no que aparenta ser um ataque com gás. Testemunhas afirmam que o ataque foi executado por jatos sírios e russos, mas tanto Moscou quanto Damasco negam bombardeio.
Foto: Getty Images/AFP/O. H. Kadour
2017: Resposta dos EUA
Em abril, os EUA lançam dezenas de mísseis sobre a base militar de onde se acredita ter saído o ataque em Idlib. Em maio, o presidente Donald Trump aprova planos para armar combatentes das milícias curdas YPG na luta contra o "Estado Islâmico". A medida enfurece a Turquia, que vê as YPG como um grupo terrorista. Em outubro, o "Estado Islâmico" perde o controle de Raqqa, sua autoproclamada capital.
Em janeiro, aviões turcos bombardeiam a região curda de Afrin, dando início à operação contra as YPG intitulada "Ramo de Oliveira". A Turquia anuncia a morte de centenas de "terroristas", mas entre os mortos estão dezenas de civis, dizem ativistas. Em fevereiro, as milícias YPG chegam a acordo com o regime sírio para o envio de tropas pró-governo para auxiliar no combate aos turcos em Afrin.
Foto: picture alliance/AA/E. Sansar
2018: Ofensiva em Ghouta Oriental
Em 21 de fevereiro, tropas pró-regime executam ofensiva em larga escala contra enclave rebelde localizado ao leste de Damasco. Em torno de 400 mil civis ficam sitiados, com acesso limitado a alimentos e cuidados médicos. Os ataques matam centenas de pessoas. No dia 24 de fevereiro, o Conselho de Segurança da ONU aprova trégua humanitária de 30 dias vigente em todo o território sírio. Ela fracassa.
Foto: Reuters/B. Khabieh
2018: O bombardeio ocidental
Após dias de ameaça, em 14 de abril Trump anuncia o lançamento de mais de cem mísseis, em conjunto com França e Reino Unido, na Síria. O ataque é uma retaliação ao ataque químico na cidade de Duma, que matou dezenas de civis e que o Ocidente atribui ao regime de Bashar al-Assad.
Foto: picture-alliance/AP Photo/L. Matthews
2019: Estados Unidos começam a se retirar da Síria
Em janeiro de 2019, os Estados Unidos começaram a se retirar da Síria. O presidente americano afirmou que o Estado Islâmico havia sido derrotado e, por isso, a presença dos EUA não seria mais necessária. A decisão foi contestada dentro do próprio governo e também pelas milícias curdas na Síria, aliadas dos EUA, que temiam enfraquecer-se.
Foto: Getty Images/AFP/D. Souleiman
2019: fim do autoproclamado califado do EI
Em março de 2019, as Forças Democráticas Sírias (FDS), aliança liderada por curdos, anunciaram que o autoproclamado califado do Estado Islâmico foi totalmente eliminado, após combates em Baghouz, considerado o último reduto jihadista na Síria. Militantes curdos e árabes das FDS, apoiados pela coalizão internacional liderada pelos EUA, combatiam há várias semanas os jihadistas.