Monólogo de Renata Carvalho foi a primeira peça brasileira selecionada para festival berlinense. Em entrevista à DW, ela falou sobre a relação da comunidade trans com a cidade, democracia e liberdade.
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A sala está escura e enfumaçada. A palavra "travesti" pisca no pano de fundo preto – é uma das poucas que não precisam de tradução. Renata Carvalho entra no palco, apenas seu corpo seminu é iluminado, o rosto não. "O meu corpo veio antes de mim, sem eu pedir", diz a atriz e escritora no início do monólogo Manifesto Transpofágico, em que narra a construção da identidade transgênero, batalha que se trava sobretudo no corpo.
A peça teve três apresentações no fim de abril em Berlim, parte da programação do Find (Festival International da Nova Dramaturgia). Foi o primeiro espetáculo brasileiro selecionado em 25 anos do festival. "A Europa precisa desconstruir a imagem da travesti", disse Carvalho no momento do espetáculo em que improvisa e abre o microfone para a plateia. Ela vai de perguntas mais triviais, como "você sabe o que é ser cis?" – à qual responde, diante da dúvida de poucos, "quem não sabe é" – a depoimentos íntimos pessoais e da plateia.
A atriz foi responsável pela fundação do Coletivo T – primeiro grupo composto só por artistas trans, em São Paulo. Também criou o Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans), que, em 2017, lançou o Manifesto Representatividade Trans. Nesse mesmo ano, a atriz ganhou destaque ao interpretar Jesus Cristo na peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, escrito pela dramaturga britânica Jo Clifford, que foi censurada em Jundiaí e Salvador e rendeu a Carvalho ameaças diárias de morte.
Em entrevista à DW, a atriz contou como foi trazer o espetáculo para a Alemanha, destino de muitos brasileiros em busca de segurança, movimento que ela chama de "diáspora travesti". Para ela, a cidade é especialmente simbólica por ter sediado os primeiros estudos e aconselhamentos sobre a transexualidade, há cem anos.
Em 1919, o médico alemão Magnus Hirschfeld criou em Berlim o Instituto de Sexologia, com uma ampla e inédita pesquisa sobre sexualidade. O extenso arquivo de documentos, relatórios e livros da instituição foi queimado pelo nazismo.
DW: Como foi trazer o Manifesto Transpofágico para Berlim?
Renata Carvalho: Era uma vontade minha há um tempo de vir para Berlim com esse trabalho. Eu tenho pesquisado alguns países da diáspora travesti do Brasil, e a Alemanha era um dos lugares onde eu precisava chegar. Há muitas histórias de travestis brasileiras. Aqui também tem uma ligação com a história do Instituto de Sexologia, do Magnus [Hirschfeld]. Acredito que estamos voltando para o que ele estava fazendo em 1900 e pouco.
Estamos falando de cem anos atrás...
Exatamente. Para você ver como é fácil destruir as coisas, difícil é construí-las. Então eu tinha esse desejo como atriz e como transpóloga. Já passamos por oito países com o espetáculo – Brasil, Itália, França, Espanha, Portugal, Irlanda, Chile e Uruguai. Era importante estar aqui também.
Que diferença você sentiu no público em cada país?
Foi diferente em cada uma das três apresentações aqui, e é diferente em todas as plateias, independentemente do país. Algumas são mais difíceis, outras mais educadas, outras mais neutras, outras querem ser mais desconstruídas. Depende muito de quem está no momento.
Há algum lugar no mundo onde o corpo trans não causa espanto?
O corpo trans causa espanto em qualquer lugar. Ele causa esse desconforto, ele abala o lugar aonde chega. Então isso vai depender muito da evolução de cada ser humano, de cada país. Uns são mais avançados, outros não. Mas avançado mesmo em questão trans é o Brasil. Não conheço nenhum lugar no mundo com tantas pessoas trans nas artes, na universidade, na política, por mais que seja um país muito violento.
Na época de "Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", você foi alvo de ações coordenadas de ódio e fake news nas redes. Como está essa relação hoje em dia?
Isso era mais na época de Jesus. Quando resolvi parar, em 2019, foi por uma questão de saúde mental mesmo. Eram notícias absurdas. Derrubaram minhas redes sociais para dizer que eu tinha morrido, ameaças de morte todos os dias. Cheguei a usar colete à prova de bala. Foi um período muito obscuro, mas ao mesmo tempo levantou questões importantíssimas na arte. Denunciou a ausência de corpos trans, levou a minha voz aonde jamais poderia ter imaginado.
O tema central do festival foi a democracia e a liberdade. Como o seu trabalho se relaciona com esse tema, frequentemente sequestrado por regimes autoritários?
A liberdade é quando você está livre ou quando o outro está livre? Eu luto pelo que eu chamo de uma democracia cênica – ampla, geral e irrestrita. Para que todos os corpos possam ser tudo na arte. Por isso que hoje eu peço uma pausa de 30 anos na prática do "transfake", e que realmente incluam corpos trans. Para que todos os corpos se tornem naturais e humanos, para que todo mundo possa começar como uma tela em branco e então desenhar sua curva dramática. Para que corpos marcados não tenham só personagens marcados. Acho que quando uma travesti, ou uma pessoa negra retinta, puder fazer todos os papeis, aí teremos alcançado essa liberdade artística de todos os corpos.
O cinema de Rainer Werner Fassbinder
Fassbinder realizou 44 filmes em 16 anos, um feito raríssimo para um diretor de cinema. Mas o poder criativo tem seus preço: ele morreu aos 37 anos, deixando grandiosas obras cinematográficas.
Foto: picture-alliance/Johanna Hoelz
O amor é mais frio que a morte
Amor, morte e frio – três termos que sintetizam a vida e a obra de Rainer Werner Fassbinder. Nascido em Bad Wörishofen, na Baviera, o jovem de apenas 23 anos fez sua estreia nos cinemas alemães com o longa-metragem "O amor é mais frio que a morte". E ele já começou brilhando: o longa foi exibido na Berlinale em 1969. Seu primeiro filme, porém, foi "This Night", de 1966, hoje dado como perdido.
Foto: picture-alliance/akg-images
Katzelmacher
O segundo filme de Fassbinder também foi um sucesso. "Katzelmacher" (1970) ganhou diversos prêmios no Deutscher Filmpreis (Prêmio Alemão do Cinema). No filme, o grupo de atores com o qual ele trabalhou durante anos começou a se formar. A obra gira em torno da relação entre quatro casais e conta com Hanna Schygulla, uma das muitas musas do diretor, no elenco.
Foto: AP
O comerciante das quatro estações
Mas nem todos os seus filmes foram êxito de bilheteria. Depois de um começo brilhante, Fassbinder teve que lidar com algumas decepções. Ele também realizou projetos na televisão e no teatro. A exposição "Fassbinder Jetzt", em cartaz em Berlim, exibe algumas imagens raras do cineasta – como esta durante as filmagens de "O comerciante das quatro estações".
Foto: DIF Frankfurt/Foto: Peter Gauhe
O medo consome a alma
No fundo do coração da plateia Fassbinder enterrou "O medo consome a alma". O filme fala sobre o amor e a amizade entre uma senhora alemã (Brigitte Mira) e um marroquino (El Hedi Ben Salem) vinte anos mais jovem que ela. O tocante longa-metragem de 1974 ainda é, mesmo 40 anos depois de sua estreia, extremamente atual.
Foto: Imago/United Archives
Effi Briest
Logo depois de "O medo consome a alma", Fassbinder surpreendeu novamente. O cineasta conhecido como grande cronista do presente e observador atento dos excluídos filmou um clássico da literatura. O romance "Effi Briest" de Theodor Fontane, estrelado por Hanna Schygulla, se tornou um requintado banquete para os olhos com belas imagens cinematográficas na mão do diretor alemão.
Roleta chinesa
O filme "Roleta chinesa" (1976) é novamente um "típico" filme do Fassbinder. Os personagens se encontram em um espaço confinado, as emoções se desdobram, se chocam e se empilham umas sobre as outras. O cineasta inflama um jogo de poder e paixão e acha sempre memoráveis imagens para seus temas: rostos e corpos refletidos em vidro, paredes lisas e muitos espelhos.
Foto: Rainer Werner Fassbinder Foundation
Bolwieser - A mulher do chefe de estação
Com o passar dos anos, Fassbinder também tratou de temas relacionados à história alemã. "Bolwieser" é uma adaptação do romance de Oskar Maria Graf de 1931. Livro e filme retratam uma cidade na Baviera nos anos 1920. O filme foi rodado para o cinema, mas paralelamente uma versão mais longa para a televisão também foi realizada. Desde o começo, Fassbinder sabia tirar o melhor dos dois meios.
Foto: Imago/United Archives
Desespero
Em meados do anos 1970, o sucesso de Fassbinder era internacional. Consequentemente, o orçamento de seus filmes também cresceu. Em "Desespero" ele trabalhou com estrelas como Dirk Bogarde e Andrea Ferréol. Apesar da estreia no Festival de Cannes em 1978 e do grande esforço para ser realizado, o filme foi um fracasso de bilheteria.
Berlin Alexanderplatz
Depois de alguns filmes menores e socialmente engajados, como "Alemanha no outono" que tratava do terrorismo na Alemanha Ocidental, Fassbinder dedicou 1979 para trabalhar em seu mais grandioso projeto. Em 13 partes, ele filmou para a televisão a adaptação de "Berlin Alexanderplatz" de Alfred Döblin. Muito antes da febre de séries de TV de hoje, Fassbinder se mostrou mais uma vez um revolucionário.
Foto: picture-alliance/KPA
Lili Marlene
Assim como em seu grande sucesso "O casamento de Maria Braun", Fassbinder trata também da história alemã em "Lili Marlene" (1980), usando uma estrutura popular para lidar com um tema sério. Nunca Fassbinder esteve tão próximo de Hollywood como aqui: cinema grandioso, atores famosos, dramaturgia eficaz. A tela se tornou, também em "Lili Marlene", um palco para a história do cinema.
Foto: picture-alliance/akg-images
Lola
Fassbinder retratou o milagre econômico da Alemanha Ocidental no filme "Lola" (1981). Na época, ele podia ter tudo que queria. Estrelas como Armin Müller-Stahl, Mario Adorf e Barbara Sukowa faziam parte do elenco. O espectadores lotavam as salas de cinema. No entanto, os bastidores de seus filmes eram um desastre, com Fassbinder se afundando em álcool, drogas e trabalho sem limites.
Foto: picture alliance/KPA
Kamikaze
Fassbinder não encontrou sucesso apenas como diretor de cinema. Ele também dirigiu diversas produções para a televisão e o teatro. Legendária foi sua mais controversa peça "O lixo, a cidade e a morte", que só estreou em 2009. Ele também atuou diante das câmeras de colegas como Wolf Gremm no filme "Kamikaze" (foto).
Foto: dapd
O desespero de Veronika Voss
Em 1982, poucos meses antes de sua morte, Fassbinder viveu outro triunfo. Seu filme "O desespero de Veronika Voss" ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim – feito que há muito tempo não acontece com um filme alemão. Sua penúltima obra convenceu os críticos: grandiosamente encenado e com soberbas interpretações, "O desespero de Veronika Voss" também encantou o público.
Foto: picture alliance/KPA
Querelle e a morte
Fassbinder não estava mais vivo na estreia de seu último filme "Querelle", baseado em um livro de Jean Genet. Ele morreu em 10 de junho de 1982, em Munique, depois de uma parada cardíaca, possível resultado de uma combinação de álcool, cocaína e remédios para dormir. Fassbinder viveu em um frenesi criativo, realizando quase 50 filmes desde os anos 1960. Seu trabalho é reconhecido mundialmente.