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Terra brasilis, Euclides e meio mundo

Simone de Mello2 de janeiro de 2004

O Brasil é motivo recorrente no último romance do austríaco Raoul Schrott, "Tristan da Cunha ou a Metade da Terra", que ficcionaliza infância de Euclides da Cunha no depoimento de um missionário europeu.

Schrott dedica 700 páginas à ilha no Atlântico SulFoto: dpa

“Monte Santo. Vejo-o à minha frente, quando – ao acordar – meu olhar atravessa a janela e recai sobre os rochedos daqui ou quando vaga em meio às pessoas durante a primeira missa do dia e acaba por repousar nos penedos, nos penhascos corroídos pela água; é sempre o mesmo monte, o calvário, que eu também vi emergir no meu Brasil. E penso no meu Euclides, no acaso que me trouxe para uma ilha que leva o seu nome e no acaso que há alguns anos me levou a conhecer aquele menino franzino de Santa Rita do Rio Negro.”

Malha de manuscritos – Estas são as palavras de Edwin Heron Dodgson, uma das vozes do romance Tristan da Cunha ou a Metade da Terra (Tristan da Cunha oder die Hälfte der Erde. Munique: Carl Hanser Verlag, 2003), onde o poeta e romancista austríaco Raoul Schrott entremeia a trajetória de quatro personagens de diferentes épocas em Tristão da Cunha, ilha glacial situada entre o Brasil, a África do Sul e a Antártida: Noomi Morholt (41), protagonista feminina integrante de uma equipe de pesquisadores encarregados de investigar a luz polar no ano 2003, Christian Reval (49), telegrafista estacionado na ilha durante a Segunda Guerra Mundial e desaparecido sob circunstâncias misteriosas, Edwin Heron Dodgson (35), missionário do século 19 e irmão do escritor Lewis Carroll, enredado em conflitos de consciência por se envolver com uma jovem, e Mark Thomsen, filatelista cinqüentão em crise matrimonial, que reconstrói a história da ilha com base em sua coleção de selos.

Literatura cartografada – O que une todas estas personae não é apenas a passagem por Tristão da Cunha e o ardor das histórias amorosas de cada um destes “tristões” visceralmente ligados à ilha glacial, mas sobretudo sua verve descritiva e detalhista, sua obsessão em mapear territórios e colecionar imagens, que torna cada um deles um alter ego do autor. Poeta doctus da literatura de língua alemã, Raoul Schrott é um dos escritores contemporâneos mais comprometidos em dar continuidade à linha mais lúdica da tradição literária européia, do barroco aos experimentos intertextuais (pós-)modernos.

Sertão glacial – Neste romance de Schrott, manuscritos de épocas anteriores – diários, cartas e relatórios encontrados pela personagem Noomi Morholt numa caixa deixada por engano na ilha – se intercalam num mosaico – um procedimento que reflete a própria estratégia narrativa do autor, compilador enciclopédico de referências literárias. Um dos intertextos de Tristan da Cunha é Os Sertões, de Euclides da Cunha, propagado em língua alemã através da consagrada tradução de Berthold Zilly.

Retrato de Euclides ... – “Ao escrever que foi um acaso que me levou a encontrar o jovem Euclides” – prossegue o reverendo Dodgson, em carta ao autor de Alice no País das Maravilhas –, “eu estava me referindo a uma coincidência de circunstâncias que me recuso a interpretar como providência. Há um certo tempo tornou-se-me estranha demais a idéia de uma predestinação divina que se mantém oculta, mas em compensação se faz espelhar em símbolos exteriores, assemelhando-se ao reflexo da luz brilhando nos veeiros da planície que tivemos que atravessar para chegar a Monte Santo, onde misteriosas ocorrências, que só podiam ser meramente supersticiosas, exigiam uma explicação.”

... quando jovem – “Isso incomodava os missionários católicos, mas como eles tivessem se proposto a tomar todas as providências para impedir o surgimento de um Estado sectário como o dos jesuítas no Paraguai do século passado, pediram-me para ir seguir as pistas, uma solicitação que atendi mais por curiosidade do que por fervor. Estas foram as circunstâncias; mas a razão mesmo foi o jovem Euclides, que o meu bispo me encarregou de colocar sob o amparo de seu tio, proprietário de uma fazenda na região de Monte Santo.”

Mais Brasil – As referências aos Sertões não se limitam a considerações em parte fictícias sobre Euclides, espalhadas romance adentro, mas também se aplica à forma de Schrott tratar a árida paisagem glacial como espaço de investigação da linguagem. E as referências ao Brasil também não param por aí. Durante toda a sua estadia na Antártida, a protagonista feminina se corresponde por e-mail com escritor brasileiro chamado Rui, que está escrevendo um romance sobre Tristão da Cunha...

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