Há exatamente dez anos, a célula terrorista neonazista NSU foi exposta após cometer assassinatos de imigrantes. Sua existência chocou a Alemanha. No entanto, os tentáculos da rede nunca foram totalmente revelados.
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Dois homens, uma mulher: Uwe Mundlos, Uwe Böhnhardt e Beate Zschäpe. Por treze anos, eles cometeram assassinatos, roubos e plantaram bombas por toda a Alemanha de maneira impune, sem serem identificados pela polícia ou órgãos de inteligência.
A série de assassinatos não tinha precedentes na Alemanha moderna. Nove homens de origem imigrante foram mortos, assim como uma policial. As vítimas foram executadas em seus locais de trabalho.
"Ações em vez de palavras" era o lema do grupo neonazista, que cometia assassinatos e roubos sem a divulgação de manifestos ou publicidade aberta sobre as razões dos atos. O trio era originário da cidade de Jena, no estado da Turíngia. Seu objetivo: assustar os imigrantes na Alemanha e expulsá-los do país. Eles se autodenominavam Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU), em referência ao nome oficial do nazismo, o nacional-socialismo.
Mortes
De acordo com a versão oficial, a NSU deixou de existir como grupo em 4 de novembro de 2011, exatos dez anos atrás. Uwe Mundlos e Uwe Böhnhardt morreram enquanto se escondiam num motorhome na cidade de Eisenach, na Turíngia, após serem cercados pela polícia na sequência de um assalto a banco.
As circunstâncias dessas duas mortes ainda são nebulosas. Os investigadores não conseguiram esclarecer se o que ocorreu foi suicídio coletivo ou se um deles matou o outro antes de se matar.
No veículo, policiais encontraram a arma da policial Michèle Kiesewetter, que havia sido assassinada quatro anos antes.
Mais tarde, Beate Zschäpe, ao saber da morte dos seus comparsas, ateou fogo na casa que o trio compartilhava. Como último ato da NSU, ela enviou um vídeo macabro e cínico para jornais e instituições divulgando os feitos e as ideias do grupo terrorista. Quatro dias depois, se entregou à polícia.
Reação
A autoexposição dos terroristas de direita desencadeou um terremoto político na Alemanha em 2011.
Durante treze anos, investigadores e meios de comunicação trataram os assassinatos dos imigrantes como crimes comuns, em alguns casos até mesmo levantando suspeitas sobre as famílias das vítimas. Vários funcionários de alto escalão dos órgãos de segurança acabaram demitidos. Comissões de inquérito são formadas para investigar o fracasso do Estado.
A polícia e os serviços secretos internos alemães levaram mais de uma década para descobrir que a série de crimes havia sido cometida por um único grupo, evidenciando os erros investigativos. E a descoberta só ocorreu por acaso.
Beate Zschäpe acabou sendo condenada à prisão perpétua em 2018. Quatro apoiadores do grupo também foram presos e condenados a penas mais leves. Desde então, as ações da NSU vêm caindo no esquecimento.
Mas "a NSU segue viva", alerta o advogado Mehmet Daimagüler. No julgamento de Zschäpe, ele representou parentes das vítimas da NSU e atuou e assessorou a promotoria. "A NSU é uma rede, uma rede que existe até hoje. Se você olhar a estrutura, você se depara com os mesmos nomes repetidas vezes, as mesmas organizações, algumas das quais já foram banidas, mas seus membros não desapareceram."
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O mito sobre o trio
De acordo com a versão oficial das autoridades, a NSU era formada essencialmente pelo trio Mundlos, Böhnhardt e Zschäpe. Eles teriam sido apoiados por "um grupo estreitamente limitado de alguns apoiadores", de acordo com o Ministério Público Federal alemão.
Mas os próprios terroristas se descreveram de maneira explícita em vídeos como mais do que apenas um trio. Logo no início de um dos vídeos produzidos pelo grupo e que foram encontrados na residência incendiada em Zwickau, aparece a seguinte mensagem: "A NSU é uma rede de camaradas com o princípio: ações em vez de palavras".
Após a autoexposição, autoridades, jornalistas e grupos de pesquisa antifascistas encontraram mais conexões entre o trio e a cena extremista de direita. Numerosos homens e mulheres ajudaram os terroristas com carteiras de identidade falsificadas ou alugando apartamentos.
Além disso, as autoridades encontraram mais evidências relacionadas aos crimes nas ruínas da residência incendiada. Elas apontam que os assassinos se prepararam intensamente antes de seus atos e analisaram as cenas dos crimes com antecedência.
Cena de extrema direita se mantém silenciosa
Martina Renner se ocupa com a NSU desde a autoexposição do grupo. Ela representou seu partido, Die Linke (A Esquerda), na CPI aberta pelo Parlamento Federal para esclarecer as falhas do Estado em lidar com os crimes. Lá ela ouviu inúmeras testemunhas, vítimas e especialistas. "É muito provável que a cena [de extrema direita] estivesse envolvida nas ações da NSU. E os apoiadores continuam ativos."
O esclarecimento completo do caso é difícil, já que envolve pessoas que preferem se manter silenciosas e nas sombras. E o silêncio funciona. A imagem pública de um grupo limitado a um trio de assassinos se solidificou.
Martina Renner acredita que as autoridades judiciárias até apoiam essa impressão propositalmente: "O fato de a NSU ser reduzida a apenas uma célula corresponde ao tratamento geral do terrorismo de direita na Alemanha. Porque se você abraça a tese de um único perpetrador, você não precisa perguntar sobre estruturas."
Aumento da violência de extrema direita
Os números atuais das autoridades de segurança destacam quão perigosas são as estruturas de extrema direita na Alemanha. O serviço de inteligência alemão estima que o número de extremistas de direita aumentou alarmantes 50%, para mais de 33.000 pessoas desde a autoexposição da NSU em 2011. E o número de ações e crimes violentos também aumentou cerca de 50% no mesmo período.
A chanceler federal Angela Merkel prometeu em 2012, durante uma cerimônia em memória das vítimas da NSU, que o Estado deveria agir de maneira decisiva contra o terror de extrema direita: "[Precisamos] fazer tudo dentro dos meios de nosso Estado constitucional para que algo assim nunca volte a acontecer", disse Merkel.
Mas, desde então, o país registrou várias ações terroristas por extremistas de direita. Nove imigrantes foram mortos num ataque em Hanau em 2020. Outras nove pessoas morreram em Munique em 2016, e duas foram mortas em Halle em 2019. Um extremista de direita também assassinou o político conservador e pró-refugiados Walter Lübcke em Kassel em 2019.
Pequenos monumentos dedicados às vítimas da NSU, como árvores e placas, também são regularmente profanados e vandalizados por extremistas de direita. Já o advogado Mehmet Daimagüler relata que vive sob ameaças de morte há anos.
Na semana passada, um alemão de 53 anos foi indiciado por 67 acusações de ameaça e incitação ao ódio racial. Os investigadores acreditam que ele está por trás de uma série de 116 cartas ameaçadoras, mensagens de texto e e-mails enviados a figuras públicas e instituições entre agosto de 2018 e março de 2021.
As mensagens continham a assinatura "NSU 2.0".
Mesmo dez anos após a revelação da existência da NSU, o terror de extrema direita na Alemanha não chegou ao fim.
jps/ek (ots)
O caso NSU
Após mais de cinco anos de processo, saem as sentenças pelas mortes de nove imigrantes e uma policial na Alemanha, num caso envolvendo extremismo de direita e críticas a instâncias estatais.
Foto: dapd
Beate Zschäpe, o rosto da NSU
Entre 2000 e 2006, nove homens de origem estrangeira foram mortos com a mesma pistola na Alemanha. A polícia tateava no escuro, e a mídia falava de "assassinatos do kebab". Em 4 de novembro de 2011, uma casa explodiu em Zwickau, no leste do país. Entre os destroços foram encontrados a arma do crime e outros objetos incriminadores. Quatro dias mais tarde, Beate Zschäpe se entregou à polícia.
Foto: dapd
O (presumível) trio da NSU
Em 1998, Zschäpe se unira aos amigos ultradireitistas Uwe Böhnhardt e Uwe Mundlos na célula terrorista Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU). O trio viveu incógnito em diversos locais por quase 14 anos, por último em Zwickau, no estado da Saxônia. Segundo os investigadores, eles teriam cruzado a Alemanha cometendo assassinatos e atentados a bomba, financiando-se através de assaltos a bancos.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Burgi
As vítimas
Ao que se sabe, a NSU matou ao menos nove homens e uma mulher. A primeira vítima, Enver Şimşek, sucumbiu em setembro de 2000 a ferimentos graves. As demais vítimas foram (a partir do alto, esq.) Abdurrahim Özudogru, Süleyman Taşköprü, Habil Kılıç, a policial Michèle Kiesewetter, Mehmet Turgut, Ismail Yasar, Theodorus Boulgarides, Mehmet Kubaşık e Halit Yozgat.
Foto: picture-alliance/dpa
Atentados a bomba em Colônia
Na rua Keupstrasse, em Colônia, habitada majoritariamente por turcos, uma bomba cheia de pregos explodiu em 9 de junho de 2004. Mais de 20 pessoas ficaram feridas, em parte gravemente. Antes, em 19 de janeiro de 2001, uma outra fora detonada na Probsteigasse. Uma jovem de 19 anos de origem iraniana sofreu queimaduras, cortes, fratura do crânio e perfuração do tímpano.
Foto: picture-alliance/dpa
Fim de uma fuga
Em 4 de novembro de 2011, um assalto a banco fracassou em Eisenach, na Turíngia. Os criminosos conseguiram inicialmente escapar, mas foram perseguidos pela polícia. Pouco mais tarde, os cadáveres de dois homens foram encontrados num trailer fumegante. Os indícios eram de suicídio. Ambos foram identificados como Uwe Böhnhardt e Uwe Mundlos, supostos integrantes da célula terrorista NSU.
Foto: picture-alliance/dpa
Último esconderijo
Poucas horas após a morte dos supostos assassinos da NSU, uma casa residencial foi pelos ares em Zwickau. Com a explosão, Beate Zschäpe aparentemente tentou eliminar as pistas na moradia que dividia com seus amigos Böhnhardt e Mundlos. Entre as ruínas, os policiais encontraram, entre outros, a arma do tipo Ceska utilizada na série de assassinatos da NSU e um vídeo de reivindicação.
Foto: picture-alliance/dpa
Reivindicação cruel
Num macabro vídeo, utilizando a apreciada figura de desenhos animados Pantera Cor-de-Rosa, a NSU reivindicou os assassinatos de nove turcos e uma policial. No entanto, uma das vítimas, Theodorus Boularides, tinha origem grega.
Foto: picture-alliance/dpa/Der Spiegel
O início do processo
Em 6 de maio de 2013, começou o processo da NSU no Tribunal Superior Regional de Munique. A única sobrevivente do trio terrorista, Beate Zschäpe, apresentou-se de terno escuro, aparentando autoconfiança. O procurador-geral da República a acusou, entre outros crimes, de "ter matado, em dez casos, um ser humano de forma traiçoeira e por motivação torpe".
Foto: Reuters/Michael Dalder
Cúmplices da NSU?
Além de Zschäpe, quatro homens foram acusados no processo da NSU como presumíveis acessórios dos crimes. Apenas Ralf Wohlleben (abaixo, dir.), ex-membro do partido de extrema direita NPD, pode ter seu nome completo citado na imprensa. Os demais, André E., Carsten S. e Holger G. estão protegidos pelo direito de personalidade.
Zschäpe quebra o silêncio
Em 9 de dezembro de 2015, após dois anos e meio de silêncio, Beate Zschäpe se pronunciou, fazendo ler uma declaração em que inculpa Böhnhardt e Mundlos pela série de assassinatos. Em meados do ano, ela se desentendera com seus três advogados indicados, passando a ser representada adicionalmente por Hermann Borchert e Mathias Grasel.
Foto: picture-alliance/dpa/P. Kneffel
Escândalo do informante
Desde o início do processo, era ambíguo o papel do Departamento de Defesa da Constituição, responsável pela segurança interna da Alemanha, nas atividades da NSU. O extremista de direita Tino Brandt (foto), informante do órgão, relatou em juízo como, nos anos 90, criara o grupo Defesa da Pátria da Turíngia (THS). A partir dele, o trio liderado por Zschäpe se radicalizou, criando a NSU.
Foto: picture-alliance/dpa/Martin Schutt
Relações mal explicadas
Quando Halit Yozgat foi baleado num internet-café de Kassel, em 6 de abril de 2006, o informante Andreas T. estava no local. Apesar disso, o funcionário da Defesa da Constituição afirmou nada saber sobre o atentado. No processo da NSU, o pai da vítima, Ismael Yozgat, relatou de forma comovedora como segurara nos braços o filho agonizante. No tribunal, levou consigo uma foto de infância de Halit.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Gebert
Protestos contra falta de clareza
Já houve uma série de manifestações contra o envolvimento de órgãos estatais alemães no caso da NSU. A organização Keupstrasse Está Por Toda Parte é uma das participantes dos protestos. Ela leva o nome da cidade de Colônia, onde a célula terrorista explodiu uma bomba cheia de pregos.
Foto: DW/M. Fürstenau
Parlamento interfere
O Parlamento federal alemão tentou trazer luz às intrigas no caso da NSU. Em agosto de 2013, o presidente da primeira comissão de inquérito, Sebastian Edathy (dir.), entregou ao líder parlamentar Norbert Lammert seu relatório final de mais de mil páginas. A conclusão foi avassaladora: "fracasso estatal". Mais tarde haveria outras CPIs em nível federal e estadual.
Foto: picture-alliance/dpa
Promessas quebradas
Em 23 de novembro de 2012, foi realizado na Konzerthaus de Berlim um evento em memória das vítimas da NSU. A chefe de governo Angela Merkel (esq.) prometeu a Semiya Şimşek e outros familiares o esclarecimento total. Mas eles estavam decepcionados diante de dossiês da Defesa da Constituição eliminados ou mantidos em caráter confidencial. Sua suspeita era de que o Estado sabia mais do que admitia.
Foto: Bundesregierung/Kugler
Procuradoria Geral exige pena máxima
Em meados de 2017, o procurador-geral Herbert Diemer e colegas apresentaram suas considerações finais. Eles exigiram para Beate Zschäpe a pena máxima, de prisão perpétua, devido à gravidade extrema de seus crimes. Para Ralf Wohlleben e André E., a acusação pediu 12 anos de cárcere, assim como cinco para Holger G. e três para Carsten S..
Foto: picture-alliance/dpa/P. Kneffel
Exigência surpreendente
Em abril de 2018, os defensores se pronunciaram. Hermann Borchert e Mathias Grasel, representando Zschäpe apenas desde 2015, reivindicaram para ela um máximo de dez anos de prisão. Entretanto, seus antigos advogados, Wolfgang Stahl, Wolfgang Heer e Anja Sturm (da dir. para a esq.) surpreenderam ao pedir a libertação imediata de Zschäpe da prisão preventiva.
Foto: Reuters/M. Rehle
Juiz respeitado
Manfred Götzl, de 64 anos, é o juiz-presidente no processo da NSU, no Tribunal Superior Regional de Munique, encarregado de pronunciar as sentenças contra Beate Zschäpe e os demais réus. Os advogados de alguns coautores do processo criticaram Götzl, desejando que ele conduzisse a ação com maior rigor. No geral, contudo, ele goza de grande respeito.
Foto: picture-alliance/dpa/T. Hase
Prisão perpétua para a ré principal
Em 11 de junho de 2018, Beate Zschäpe (esq.), de 43 anos, foi condenada à prisão perpétua pelo Tribunal Superior Regional de Munique. Como os crimes são de extrema gravidade, ela não poderá deixar a prisão depois de cumprir 15 anos de pena. A defesa anunciou que vai recorrer da decisão à instância superior, a Corte Federal de Justiça. Os demais réus receberam penas entre dez e dois anos e meio.