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Coleção adquirida por nazistas na mira de tribunais dos EUA

Sarah Judith Hofmann | Elizabeth Grenier
8 de dezembro de 2020

Suprema Corte americana começa a analisar destino do Tesouro dos Guelfos. Estado alemão diz que coleção foi adquirida de maneira legítima durante o regime nazista, mas descendentes de marchands judeus contestam.

Visitante observa o relicário da cúpula (Kuppelreliquar) do chamado "Welfenschatz" (Tesouro dos Guelfos), exibido no Kunstgewerbemuseum (Museu de Artes Decorativas), em Berlim, em 24 de fevereiro de 2015.
O" relicário da cúpula" faz parte do Tesouro dos GuelfosFoto: Getty Images/AFP/T. Schwarz

A Suprema Corte dos Estados Unidos analisou nesta segunda-feira (07/12) os argumentos em torno de um dos casos de litígio de arte mais espetaculares da história recente: descendentes de marchands judeus estão processando o governo alemão por causa de uma coleção de artefatos eclesiásticos medievais conhecida como Tesouro dos Guelfos (Welfenschatz), que eles afirmam ter sido ilegalmente apropriada pelos nazistas.

Tratam-se de cruzes de ouro, joias e outras obras religiosas dos séculos 11 a 14, atualmente armazenadas no Museu de Artes Decorativas, em Berlim. A mais alta corte americana deve agora determinar se o caso, que há tempos já se arrasta, pode ser levado adiante no país.

Um caso alemão nos EUA

Hermann Parzinger, presidente da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano – que administra o Museu de Artes Decorativas de Berlim – argumenta que a ação é improcedente: "Nossa opinião é que a Alemanha é a jurisdição adequada para um caso que envolve a venda de uma coleção de arte medieval alemã por negociantes de arte alemães para um estado alemão'', disse Parzinger em um comunicado.

Em uma petição apresentada antes da sessão, a Alemanha sublinhou que leva tais reivindicações a sério: "O governo alemão forneceu cerca de 100 bilhões de dólares (valores de hoje; cerca de 510 bilhões de reais) para compensar os sobreviventes do Holocausto e outras vítimas da era nazista", afirma o comunicado. O Estado alemão, no entanto, argumenta que, uma vez que a venda ocorreu entre alemães em solo alemão, apenas os tribunais alemães poderiam decidir neste caso.

Decidir de outra forma, acrescentou o documento, "terá graves consequências de política externa, abrindo caminho para uma série de ações judiciais contra soberanos estrangeiros por seus atos domésticos soberanos – e isso pode levar outras nações a retribuir, forçando os EUA a defender ações semelhantes".

O governo americano apoia a Alemanha no caso.

Hermann Göring (à direita) ofereceu o Tesouro dos Guelfos a Hitler em 1935 como um presente pessoalFoto: picture-alliance/dpa/Fine Art Images

Um presente para Hitler

O Tesouro dos Guelfos compreende 44 obras-primas de arte eclesiástica medieval que derivam da Casa de Guelfo (ou Welf), uma das mais antigas dinastias europeias que reuniu extensas coleções de arte.

Tendo comprado o Tesouro dos Guelfos da família Welfen em 1929, um consórcio de marchands judeus vendeu peças avulsas no ano seguinte, livrando-se das 42 peças e joias restantes em 1935 ao entregá-las para o Estado prussiano, que desde então as mantém em sua própria coleção.

Hermann Göring, o então primeiro-ministro da Prússia e chefe da Força Aérea Alemã, deu o tesouro a Adolf Hitler como um presente pessoal. Mas os herdeiros dos negociantes de arte judeus dizem que tal presente fora fruto de extorsão.

Alega-se, por exemplo, que um dos comerciantes de arte, Samy Rosenberg, recebeu ameaças de assassinato. Seus herdeiros argumentam que, se ele não tivesse vendido o tesouro pelo baixo valor de mercado estabelecido pelos nazistas, ele e sua família nunca teriam sido retirados da Alemanha.

Consórcio de marchands judeus que venderam coleção aos nazistas em 1935Foto: Sullivan & Worcester

Tal versão dos eventos foi aceita pela juíza americana Colleen Kollar-Kotelly em 2017, que declarou: "A tomada do Welfenschatz [...] guarda conexões suficientes com o genocídio, de modo que a alegada venda forçada pode representar uma violação do direito internacional." De fato, se o caso for julgado sob as leis do direito internacional, o princípio segundo o qual um Estado soberano não pode ser processado perante os tribunais de outro Estado torna-se irrelevante.

Um 'acordo justo' em 1935?

O ponto chave no processo em questão é se todos os possíveis casos de arte roubados pelos nazistas devem ser investigados em detalhes ou se basta presumir que, após a tomada de poder por Hitler em 1933, os negociantes de arte judeus foram gradualmente privados de direitos e, portanto, não estavam mais em um nível capaz de atuar livremente no mercado artístico.

O Tesouro dos Guelfos inclui relíquias valiosas, como esta Virgem Maria de 1482, hoje no Museu Bode, em BerlimFoto: picture-alliance/dpa/S. Pilick

A Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano defende a primeira opção, alegando que um preço apropriado fora pago em 1935, pois uma crise econômica global havia deprimido o mercado artístico. Parzinger disse que os registros históricos "mostram claramente que houve longas e difíceis negociações em torno do preço e que os dois lados se encontraram exatamente no meio de suas ofertas iniciais".

No entanto, os herdeiros dos negociantes de arte argumentam que, em 1935, não era possível para marchands judeus obter um "acordo justo". Eles dizem que o preço de compra, 4,25 milhões de reichsmarks, foi cerca de um terço do valor real da coleção. Em todo caso, segundo os princípios do direito internacional, vendas de propriedades por judeus na Alemanha nazista são presumivelmente feitas sob pressão e, portanto, inválidas, disse o advogado dos herdeiros, Nicholas O'Donnell.

Faltam leis para casos de arte roubada na Alemanha

Já em 2008, os advogados que representam os negociantes de arte judeus solicitaram que a Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano devolvesse o Tesouro dos Guelfos a seus legítimos proprietários.

Mas em 2015, a chamada Comissão Limbach de especialistas independentes recomendou que o tesouro fosse deixado em Berlim, argumentando que o preço pago em 1935 correspondia ao valor de mercado de então. Os advogados que representam os herdeiros dos comerciantes de arte disseram então que não tinham escolha a não ser entrar com processos em um tribunal de Washington DC, uma vez que não há base legal para os tribunais considerarem os casos de restituição na Alemanha. A recomendação da Comissão Limbach não é juridicamente vinculativa.

Com o passar dos anos, o caso chegou à Suprema Corte dos EUA, que agora ouvirá argumentos para determinar se os herdeiros da coleção devem ter permissão para continuar com o processo nos tribunais americanos. A decisão é esperada para junho de 2021.

Se for determinado que os tribunais americanos têm jurisdição no caso, isso pode se tornar o precedente para outras ações do tipo. Como tal, o ônus da prova não caberia mais aos herdeiros de negociantes de arte ou proprietários privados possivelmente destituídos de direitos. Em vez disso, os museus alemães teriam de provar que são proprietários legais das obras de arte que chegaram à sua posse durante a era nazista.
 

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