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"Todos são suspeitos de covid-19 em meio à pandemia"

Gustavo Basso de São Paulo
23 de junho de 2020

Enquanto economia reabre, profissionais do Samu de São Paulo relatam estresse e exaustão. Em maio, quase um quarto dos atendimentos realizados na cidade teve relação com a covid-19 ou problemas respiratórios.

Médicos em São Paulo
"Não há perspectiva de fim da quarentena, e isso acaba se refletindo no cansaço e intolerância da sociedade", diz diretor do Samu Foto: DW/G. Basso

"Hoje não há na população uma perspectiva de futuro, de esperança de quando a quarentena vai acabar, e isso acaba se refletindo no cansaço e intolerância da sociedade como um todo." A opinião é do médico de urgência Francis Fujii, diretor médico do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de São Paulo, que atua na linha de frente no combate à covid-19 no maior município do país e com maior número de casos da doença.

Na manhã do último sábado (20/06), três meses após o início da quarentena oficial no estado de São Paulo, a aposentada Lázara Candido Ferraz, de 97 anos, sentia muita fadiga e falta de ar quando foi socorrida por Fujii e sua equipe, composta pela enfermeira Renata Soares, e o condutor Eduardo Dias. Debilitada por conta de uma anemia e apresentando baixa oxigenação no sangue, ela teve de ser convencida a ser levada para o hospital.

"Meu filho, não quero ir para o hospital, não. Lá tem muito micróbio, esse vírus", dizia ela, enquanto Fujii e Soares tentavam alertá-la para o risco de ficar em casa.

"Muita gente tem medo de ir para o hospital desde o começo da pandemia, e o resultado disso é que aumentou a quantidade de óbitos em casa. Mas apenas 10% deles são causados pela infecção do novo coronavírus", aponta Fujii.

Como é proibido o Samu conduzir um paciente ao hospital contra a vontade, foi essencial o trabalho de convencimento que envolveu também a aposentada Ana Cristina Naddeo, de 56 anos, sobrinha informal de Lázara.

Não raro profissionais da saúde precisam realizar o preparo para o atendimento no meio da rua, entre um paciente e outro. Assim foi com a aposentada, apesar do dia relativamente calmo, com seis atendimentos ao todo.

Lázara Candido Ferraz, de 97 anos, sentia muita fadiga e falta de ar quando foi socorrida pelo SamuFoto: DW/G. Basso

Maior serviço de emergência da América Latina, o Samu da cidade de São Paulo realiza, mensalmente, cerca de 14 mil atendimentos. Durante a pandemia, no entanto, esse número cresceu: em maio de 2020 foram 16.109, recorde até o momento. Quase um quarto dos atendimentos (3.977) teve relação com a covid-19 ou problemas respiratórios. Em junho, esse número deve ser ainda mais alto.

"O pavor para ir ao hospital buscar atendimento, como aconteceu com a senhora Lázara, levou pacientes com doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, a ficar em casa, ao mesmo tempo que a quarentena piorou o estilo de vida de todos em geral. Por isso, o Samu vem trabalhando mais ao longo desses meses da pandemia", explica Fujii. Com estilo de vida, ele diz se referir a alimentação, lazer e exercícios físicos, todos afetados durante a quarentena e que prejudicam a saúde da população.

Desde o início de junho, a reabertura da economia é mais um fator de preocupação para os profissionais da saúde. Contrariando a opinião de médicos até mesmo do comitê de combate ao coronavírus criado pelo governo estadual, o governador João Doria implementou a partir do início do mês o chamado Plano SP.

Estabelecido em cinco fases, o plano prevê a liberação gradual da quarentena, num momento em que o estado ainda está batendo recordes de contaminação. Nesta segunda-feira, as autoridades anunciaram que o interior passou a capital no número oficial de contaminações por coronavírus.

De acordo com projeções de um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o relaxamento da quarentena no estado de São Paulo poderá provocar um aumento de 71% no número de mortes causadas pela covid-19 no estado até o início de julho.

Cuidados preventivos

Além do aumento do número de atendimentos, a pandemia causada pelo Sars-CoV-2 trouxe uma série de protocolos que devem ser cumpridos pelos profissionais para evitar a contaminação tanto das equipes médicas quanto dos pacientes atendidos.

"Todos nós somos suspeitos de covid-19 em meio à pandemia; pode ser um trauma de acidente de carro, um infarto, nós precisamos nos paramentar como se fosse um caso da doença", explica Renata, enquanto veste o complexo Equipamento de Proteção Individual (EPI). Além da habitual máscara, os profissionais devem vestir um macacão descartável, óculos de proteção, um segundo par de luvas e, em alguns casos, o face shield (protetor facial de acrílico).

A demanda por equipamentos de proteção em todo o mundo acabou por gerar escassez em países com nenhuma ou pouca produção local, como o Brasil. O problema afetou também o Samu da capital paulista no início da epidemia na cidade.

"Quando a doença chegou ao país, começamos a estabelecer protocolos de atendimento e proteção, alguns dos quais já foram modificados e não usamos mais", comenta o médico, de 41 anos. Com a gestão descentralizada por coordenadorias regionais, houve zonas de São Paulo onde os profissionais tiveram de enfrentar escassez de equipamentos de proteção.

"Aos poucos a paciência e energia das pessoas vai se esgotando", relata condutor de ambulânciaFoto: DW/G. Basso

"Não estamos usando o EPI adequado. Não há gorro, e os aventais não são impermeáveis como deveriam ser", falou um médico do Samu à agência Folhapress, em março deste ano, sob a condição de anonimato. O médico também relatou falta de preparo das equipes. "A falta de treinamento faz com que os funcionários se sintam inseguros, façam uso inadequado dos materiais e comecem a fazer estoques próprios."

Com o passar do tempo, o problema foi solucionado, aponta Fuji. Ele pede atenção constante aos protocolos de equipamento de proteção e higiene da ambulância e utensílios como maca e cadeira de rodas.

"Temos que lembrar a nós mesmo e principalmente aos colegas que ainda estamos em uma pandemia. Nós passamos mais tempo na rua trabalhando diretamente com as pessoas e não podemos relaxar. Eu cobro dos colegas constantemente", conta Renata.

O condutor de ambulância Eduardo Dias reclama da falta de comprometimento de alguns profissionais. "Temos equipes com mais resistência ao equipamento de proteção, e conforme a quarentena vai se estendendo, a paciência e energia das pessoas para o cuidado vai se esgotando", diz.

Trocando vivos por mortos

Para Dias, a fase mais complicada começou com a portaria do governo paulista que determinou que o Samu passaria a ser responsável pelas declarações de óbitos por causas naturais na capital paulista, prática iniciada em 10 de abril. A partir de então, cabia ao Samu emitir os atestados de óbitos dos moradores da capital que morressem em casa.

Geralmente, a tarefa é uma atribuição do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) da prefeitura. Todos os corpos resultantes de mortes não violentas seguem para o SVO, onde médicos legistas fazem uma necrópsia para identificar a causa. Só então os corpos são liberados para o serviço funerário. No dia 20 de março, Doria emitiu uma portaria determinando que qualquer pessoa que tivesse morrido com suspeitas de covid-19 não passaria mais por necrópsia.

A portaria determinava também que os corpos deveriam ser desinfectados, colocados nus em um saco conhecido como mortalha e enterrados o mais rapidamente possível, sem direito a velório e com caixões lacrados. Com o aumento das mortes domiciliares e a obrigatoriedade de o Samu declarar o óbito e preparar o corpo para ser recolhido pelo serviço funerário, o serviço de atendimento de emergência, que já enfrentava problemas há anos, ficou ainda mais sobrecarregado.

Samu de São Paulo realizou 16.109 atendimentos em maio, bem acima da média mensal de cerca de 14 milFoto: DW/G. Basso

Todos os Samu do país trabalham com três configurações: a básica, que conta com condutor e técnico de enfermagem; a intermediária, que além destes leva um enfermeiro; e o Suporte Avançado à Vida (SAV), única modalidade com médico a bordo da ambulância e que tinha autorização para fazer as declarações de óbito.

"Tornou-se um desperdício: reservamos uma ambulância com equipe altamente especializada em salvar vidas para realizar um questionário de 120 perguntas que leva até 90 minutos para ser realizados; não faz sentido deslocar equipes para atender os mortos enquanto várias pessoas vivas estão sem atendimento", disse à época uma enfermeira que preferiu não se identificar.

A partir de maio, este serviço passou a ser feito por unidades do Samu apelidadas de "caveirão", com médicos recém-contratados que trafegam não em caras ambulâncias, mas em veículos de passeio somente para a verificação desses óbitos em casa. Ao todo, são seis equipes com médico, enfermeiro e condutor para a função, liberando o SAV, que custa em torno de 150 mil reais por mês, ao atendimento de pacientes vivos.

Realidade da função 

O Samu foi criado em 2004. O governo federal determinou então que o financiamento do programa, integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS) seria dividido entre União, estados e municípios, cabendo a cada um, respectivamente, 50%, 25% e 25% dos custos. Em São Paulo, o governo estadual criou o Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências (Grau), ligado ao Corpo de Bombeiros, e, por conta disso, não participa do custeio.

"O Estado fornece esse serviço, mas o Grau conta com quatro ambulâncias, enquanto nós temos 90 rodando todos os dias, com a meta de chegar a 122. Já temos os veículos, mas falta o pessoal para operar", diz Fujii.

No seu pior momento, em 2012, o Samu paulistano chegou a contar com cerca de 50 ambulâncias em operação. Neste ano, com a pandemia, foi estabelecida uma parceria com a organização Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), responsável desde os anos 1940 pela gestão do Hospital São Paulo.

Com a divisão do orçamento entre município e governo federal, os mais de 12 milhões de habitantes da cidade contam com dez unidades SAV, outras dez a 20 intermediárias, e, na grande maioria, unidades básicas de atendimento do Samu – com veículos equivalentes a uma UTI móvel, mas equipes enxutas.

"As unidades básicas são o alicerce do Samu", diz Dias. "Elas atendem desde os casos mais simples até paradas cardiorrespiratórias, e sem elas a conta não fecha. Cada uma custa de seis a sete vezes menos que uma SAV", complementa o condutor.

"Não é todo profissional que topa estar tão exposto no local de trabalho. Hoje em dia todo mundo tem um celular com câmera: ou você segue o protocolo corretamente, ou você vira notícia. Dentro do pronto-socorro, há privacidade, só você sabe o que está sendo feito", diz o médico que acompanhava Dias na ambulância.

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