Para o colunista Thomas Milz, o Brasil de hoje parece um filme de José Padilha que muita gente entendeu errado. A única diferença é que não dá para simplesmente desligar a televisão.
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"Bandido bom é bandido morto!" ou "Homem com farda preta entra na favela pra matar, nunca pra morrer." Ainda lembro como, há dez anos, o Brasil discutia sobre essas frases. As pessoas se perguntavam: "O capitão é um fascista?" É que o capitão Nascimento, o duvidoso personagem principal do filme Tropa de Elite, matava e torturava, aparentemente sem piedade. É permitido mostrar algo assim no cinema? Isso não é apologia à barbárie?
Na época, o diretor José Padilha ficou surpreso com o fato de o capitão ter sido alçado à condição de herói pelo público. Na realidade, a intenção era mostrar como era repugnante o culto da polícia ao assassinato e à tortura. Queria-se criar um anti-herói, e não um herói. A sutil ironia do cineasta intelectual saiu pela culatra naqueles tempos. Mas foi porque os espectadores não a entenderam? Ou foram os realizadores que, talvez, não entenderam o seu público?
De qualquer forma, os membros reais do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) eram heróis naquele momento, invadindo as favelas do Rio para abrir caminho para as Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs. O Rio se encheu de esperança de, finalmente, romper com a espiral infinita de violência e contraviolência.
A esperança desapareceu. O capitão Nascimento também sofreu terrivelmente. A pressão do terror cotidiano se transformou numa lenta, porém indubitavelmente ruína psicológica. O atormentado macho alfa perdeu a mulher justamente para Marcelo Freixo, político esquerdista do Psol. Ou, melhor dizendo, para o personagem Fraga, inspirado em Freixo e que apareceu em Tropa de Elite 2. Nessa sequência, Nascimento lutava contra os policiais corruptos do Rio e os políticos civis por trás do sistema.
O final da história foi feliz. O capitão Nascimento reconheceu seus próprios limites e deixou o trabalho para os bons políticos liderados pelo esquerdista Fraga, que então limpou um estábulo cheio de políticos civis vilões e milicianos. Que ingenuidade, diríamos hoje.
É que, em seguida, veio a Lava Jato, também tematizada por Padilha na série O mecanismo, da Netflix. E, novamente, o público entendeu tudo errado. Segundo Padilha, o fato de ele ter colocado a famosa frase do ex-senador Romero Jucá, de "estancar a sangria" das investigações, na boca da figura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não foi nada mais do que uma ferramenta de dramatização. De acordo com o criador da série, numa obra de ficção, ele teria a liberdade de deturpar os fatos históricos. OK, pensei, tomara que a série não seja vista por muita gente.
Enquanto isso, a Tropa de Padilha já virou cult. E tem uma continuação: Tropa de Elite 3. No próximo domingo, o capitão Nascimento disputará o segundo turno da eleição. Num vídeo, o ator que fez o papel do capitão no filme pede que seus concidadãos ainda ajam para evitar a vitória de Nascimento. Wagner Moura diz que o assunto é sério: "Agora, é a civilização contra a barbárie."
Durante décadas, o capitão pôde navegar pelos limiares de dor da democracia. Como deputado, exaltou torturadores, pediu 30 mil assassinatos de opositores, ofendeu colegas no Congresso, zombou de uma presidente torturada ao elogiar torturadores – sem que a democracia se defendesse.
Na noite do primeiro turno, ele difundiu impunemente a fake news de que a eleição tinha sido manipulada. Agora, chega a ameaçar seus opositores políticos de prisão, enquanto seu filho filosofa sobre o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF). As instituições agem como se essa fosse apenas mais uma dramatização. Mas faz tempo que o capitão não é mais um personagem de filme ou da televisão. Só que não há controle remoto para desligar o filme.
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1989: a primeira eleição direta da redemocratização
Os brasileiros voltaram a escolher diretamente um presidente depois de 27 anos. Um total de 22 candidatos se apresentou – até hoje um recorde. O pleito foi marcado por debates na TV e acusações de manipulação jornalística. Fernando Collor, filiado a um partido nanico, largou na frente ao se apresentar como “caçador de marajás”. No final, Collor derrotou o líder sindical Lula (PT) no 2° turno.
Foto: Radiobras/Roosewelt Pinheiro
1994: o início da era tucana
No início de 94, o pleito tinha um favorito: Lula. No entanto, alguns meses antes da eleição foi lançado o Plano Real, bem-sucedido em conter a inflação. A popularidade de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), um dos autores do plano, disparou. Lula, que havia criticado o real, afundou nas pesquisas. FHC acabou vencendo a eleição ainda no 1° turno. Era o início de oito anos de hegemonia do PSDB.
Foto: Acervo FHC
1998: a reeleição entra em cena
Em 1997, foi aprovada a emenda da reeleição– com denúncias de compra de votos –, abrindo caminho para FHC disputar mais um mandato. Mais uma vez seu adversário foi Lula, que indicou Leonel Brizola, seu antigo rival na esquerda, como vice. Durante a campanha, o governo omitiu que o real estava sobrevalorizado. FHC foi eleito no 1° turno. Depois da posse, o real sofreu uma desvalorização recorde.
Foto: Acervo FHC/Secretaria de Imprensa
2002: o início da hegemonia petista
Lula chegou à eleição com uma nova imagem: se comprometeu a apoiar o plano real, nomeou um empresário como vice e recorreu a marqueteiros. A estratégia para acalmar o mercado deu certo. Ciro Gomes chegou a despontar em segundo lugar, mas afundou após uma série de declarações que repercutiram mal. No final, Lula derrotou o candidato do governo FHC, José Serra, no segundo turno, com 61% dos votos.
Foto: Agência Brasil/M. Casal Jr.
2006: escândalos não impedem reeleição de Lula
Lula se candidatou novamente após a eclosão do escândalo do Mensalão. Parecia destinado a vencer no 1° turno, mas a prisão de assessores do PT na reta final abalou sua campanha. No 2° turno, os petistas contra-atacaram. Rotularam o tucano Geraldo Alckmin de privatista e de ser contra o Bolsa Família. Alckmin acabou recebendo menos votos no 2° turno do que na primeira rodada, e Lula foi reeleito.
Foto: Instituto Lula/R. Stuckert
2010: a primeira presidente mulher
Com alto índice de popularidade, Lula apresentou Dilma Rousseff como candidata à sucessão. Os tucanos voltaram a lançar José Serra, e a ex-ministra Marina Silva disputou pela primeira vez. A campanha de Serra tentou encurralar Dilma ao acusá-la de ser favorável ao aborto. No final, pesou a popularidade de Lula, e a petista ganhou no 2° turno, se tornando a primeira mulher a chegar à Presidência.
Foto: Agência Brasil/W. Dias
2014: a campanha mais cara e acirrada
Nova polarização entre PSDB e PT: Dilma disputou um novo mandato com Aécio Neves. Após a morte de Eduardo Campos (PSB), Marina Silva entrou na corrida, mas desabou nas pesquisas após ataques do PT. Dilma foi reeleita com apenas 3,28 pontos percentuais a mais que Aécio no 2° turno. A petista e o tucano gastaram R$ 570 milhões - com muitas doações de empresas acusadas de corrupção na Lava Jato.
Foto: Reuters/R. Moraes
2018: polarização entre PT e Bolsonaro
Após uma campanha que acirrou ânimos e dividiu o país, Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito com 55,13% dos votos, contra 44,87% de Fernando Haddad (PT). A vitória do ex-capitão defensor do regime militar marcou a volta da extrema direita brasileira ao poder e representou um fracasso para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que nesse pleito estava preso por corrupção e impedido de se candidatar.
Foto: Reuters/P. Whitaker/N. Doce
2022: inédita disputa entre presidente e ex-presidente
Os candidatos mais bem posicionados nas pesquisas são o presidente Jair Bolsonaro (PL), que disputa reeleição, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que recuperou os direitos políticos. Bolsonaro ampliou benefícios sociais às vésperas da campanha e vem questionando o sistema eleitoral. Já Lula busca aliança ampla contra extrema direita e capitalizar sua experiência anterior no governo.