Um Brasil de novas possibilidades em "Que horas ela volta"
Marco Sanchez8 de fevereiro de 2015
Com Regina Casé no elenco, filme de Anna Muylaert apresentado em Berlim retrata com humor e sensibilidade as mudanças na relação entre empregadas domésticas e patrões ocorridas recentemente no país.
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Longa expõe arquitetura social brasileira
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Apresentado neste domingo (08/02), quarto dia da maratona cinematográfica da Berlinale este ano, Que horas ela volta, novo filme de Anna Muylaert, é uma inusitada surpresa.
Fugindo dos clichês de comédias que retratam o universo das empregadas domésticas de maneira zombeteira, o filme da cineasta paulistana é um denso drama familiar – mas sem deixar de dar espaço para o humor.
"A ideia para o filme surgiu quando tive meu primeiro filho e não quis contratar uma babá. Ao mesmo tempo, percebi que esse é um trabalho muito importante, mas considerado de segunda classe no Brasil", contou Muylaert na coletiva de imprensa em Berlim."Eu demorei 18 anos para chegar no roteiro final".
Arquitetura dos afetos
Que horas ela volta é centrado em Val (Regina Casé), uma empregada que vive com os patrões e tem grande apreço por seu trabalho. Ela comanda a casa e ama, como uma mãe, o único filho da família, praticamente criado por ela.
"É um trabalho desconsiderado. Houve algumas mudanças nos últimos 12 anos com o governo do PT. A arquitetura da casa simboliza essa divisão social. A empregada tem seu lugar e está banida das áreas de lazer", avaliou Muylaert. "Assim como no fenômeno dos rolezinhos.", comparou.
A harmonia do lar começa a mudar quando a filha de Val, Jéssica (Camila Márdila), resolve ir a São Paulo prestar vestibular de arquitetura. Inteligente e confiante, a jovem acaba abalando a estrutura da família.
"Inicialmente, ela era o que se espera do clichê da filha de uma empregada no Brasil: fraca, pobre e facilmente abusada. Eu lutei muito para que ela trouxesse um pouco de mudança, mas ao mesmo tempo, queria fugir do final feliz. Eu nasci do lado de fora da porta da cozinha e demorei muitos anos para conseguir levar a câmera para o outro lado (de dentro)", revelou a cineasta.
Olhar para o passado com esperança no futuro
A grande inspiração para a personagem de Val foi Dagmar, empregada que trabalhou por décadas na casa da família de Muylaert. A personagem ganhou contornos dramáticos, divertidos e carinhosos na interpretação de Regina Casé e é balanceada pela explosiva atuação de Márdila como Jéssica.
"Sempre fui muito revoltada com essa situação, mesmo quando criança. Eu não conseguia entender se ela era ou não da minha família. Isso me confundia", revelou a diretora. "Esse (filme) foi um projeto de uma vida inteira."
Anna Muylaert contou que a intenção era fazer um "filme sério", que pudesse valorizar a cultura popular e também a afetividade transmitida por essas babás. "O amor de mãe dado por essas mulheres vale ouro", resumiu.
Filmes brasileiros na Berlinale 2015
Apesar de estar fora da competitiva, o Brasil está representado em outras mostras do festival de cinema em Berlim. "Sangue Azul" e "Ausência", estrelados por Daniel de Oliveira e Regina Casé, são destaques.
Foto: Frederico Benvenides
Sangue Azul
Estrelado por Daniel de Oliveira, o filme de Lírio Ferreira abre a mostra Panorama, a segunda mais importante da Berlinale. Com um ilusionista e um homem-bala como personagens, o longa lança um olhar poético sobre a colisão de dois microcosmos, mostrando que o mundo que escolhemos longe de casa pode não ser tão distante quanto imaginamos.
Foto: Berlinale 2015
Ausência
Qual a importância de um pai na vida de um filho? Qual é o peso do abandono da figura paterna sobre toda uma família? "Ausência", de Chico Teixeira, é centrado em Serginho, um menino de 15 anos que tenta lidar com as mudanças trazidas pela vida. Mas a transição entre a infância e a idade adulta não é fácil, ainda mais quando os caminhos parecem incertos e nebulosos.
Foto: Berlinale 2015
Que horas ela volta?
A diretora Anna Muylaert sempre mostrou um olhar apurado para comédias de humor negro. No entanto, "Que horas ela volta?" se aproxima mais do drama familiar. Val (Regina Casé), empregada de uma família rica em São Paulo, vê sua vida virar de cabeça para baixo quando a filha (Camila Márdila) decide se mudar para a cidade.
Na Berlinale de 1998, Walter Salles e Jia Zhang-ke descobriram uma visão parecida sobre seus ofícios e sobre a maneira como apontam suas lentes para o mundo. Neste documentário, o brasileiro acompanha o colega chinês numa visita a locações de seus filmes e ao lugar onde ele cresceu.
Foto: Berlinale 2015
Beira-Mar
A estreia na direção dos jovens gaúchos Filipe Matzembacher e Marcio Reolon mostra dois melhores amigos lidando com os primeiro passos da vida adulta. Eles partem para uma viagem aparentemente banal, mas que acaba revelando mais do que os dois estão acostumados a compartilhar na vida cotidiana.
Foto: Berlinale 2015
Brasil S/A
Da vulgaridade às belezas, naturais e artificiais, o primeiro longa de Marcelo Pedroso reforça a boa safra de filmes de Pernambuco. "Brasil S/A" é uma parábola alegórica de um país cheio de progresso, mas que ainda corre atrás da ordem e, ao mesmo tempo, molda a própria identidade.
Foto: Berlinale 2015
Mar de Fogo
O diretor Joel Pizzini faz uma homenagem ao clássico do cinema brasileiro "Limite" e ao seu criador, Mario Peixoto. Usando imagens do filme e entrevistas feitas com Peixoto nos anos 1970 e 1980, Pizzini constrói um pequeno filme-ensaio e um curta-metragem arrebatador.
Foto: Berlinale 2015
Fuga dos meus olhos
Após o diálogo imaginário entre Brasil e Portugal, apresentado na Berlinale do ano passado no curta "Fernando que ganhou um pássaro do mar", Felipe Bragança continua trabalhando nas linhas tênues do cinema, misturando poesia com ficção e realidade. Seu novo filme gira em torno de fábulas oriundas de três países africanos – Mali, Gana e Burkina Faso.
Foto: Felipe Bragança
Além das telas
A Forum Expanded mostra outra forma de ver o cinema. Além de filmes, a mostra traz a exposição "Doors Open", em que performances e instalações – incluindo "Viventes" e "Je proclame la destruição", dos brasileiros Frederico Benevides e Arthur Tuoto – questionam o cinema como uma forma de arte mutante.
Foto: Frederico Benvenides
Olhar indígena
A mostra NATIVe se dedica neste ano às comunidades indígenas na América Latina e a sua difícil sobrevivência. O Brasil marca presença com os documentários "O Mestre e o divino", de Tiago Campos Tôrres, "As hiper mulheres", de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro, e "Ma ê dami xina", de Zezinho Yube.