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Um Carnaval cheio de som, fúria e sentido

J.P. Cuenca
13 de março de 2020

O Carnaval é sempre um termômetro dos humores e da política nacional. Num momento em que bobos da corte ocupam os tronos, bufões fascistas derretendo as instituições sem qualquer pudor, os sintomas saltam aos olhos.

Bloco de Carnaval na Gamboa, bairro da zona portuária do Rio de Janeiro
Bloco de Carnaval na Gamboa, bairro da zona portuária do Rio de JaneiroFoto: J. P. Cuenca

"O pandeiro bate/É dentro do peito/Mas ninguém percebe." É assim que Carlos Drummond de Andrade define a solidão compartilhada da festa, em Um homem e seu Carnaval, de 1934. A jornada épica de um Carnaval, seja qual for, é sempre baseada nesse mesmo paradoxo central: atravessamos multidões estando profundamente sozinhos.

Aqui há uma conexão com nossas sensações mais imediatas – vivemos um perde e ganha constante (sede, desejo, vontade de ir ao banheiro?) até aquele momento dourado em que se está no único lugar possível, a melhor esquina do mundo naquele segundo. Navegando entre a frustração e a recompensa, embalados pelo mantra dos surdos e marchinhas, entramos mesmo sem querer num estado semimeditativo.

O superego descansa coletivamente, e esse é o momento do ano em que as ruas e seus eguns falam mais alto – para quem tiver ouvidos para ouvir. Os menos sensitivos podem contentar-se em ler cartazes. Nunca foram tantos como agora, em tempos de Bolsonaro. O melhor deles, vi num bloco de Carnaval na Gamboa, bairro da zona portuária do Rio de Janeiro: "O único jeito de não ficar triste é ficar puto."

Talvez seja. Afinal, num momento em que bobos da corte ocupam os tronos, bufões fascistas derretendo as instituições sem qualquer vestígio de pudor, o que acontece com o Carnaval? Como aqui sempre nos divertimos à sério, a resposta é simples: a folia fica ainda mais séria. Nos blocos, fantasias-manifesto, gritos de guerra, slogans e cancelamentos. E, na passarela, escolas de samba ainda mais politizadas, valorizando orixás e tambores sob perseguição neste Brasil evangelista – e muito mais vestidas que as ruas, onde a nudez feminina ganha renovada voltagem feminista. 

E tome cortejos infinitos, anfetaminados, desafiando os limites físicos de seus fiéis, escalando becos, ultrapassando túneis, tocando sem parar até depois do fim – não só do Carnaval, mas da civilização, ou do pouco que nos resta dela.

J.P. Cuenca vive hoje entre São Paulo e BerlimFoto: privat

É quando penso no maestro Wallace Hartley. Vestindo salva-vidas, os oito músicos de sua orquestra mandaram ver animados ragtimes e valsas enquanto o RMS Titanic afundava no Atlântico Norte, no que talvez seja o único episódio verdadeiramente carnavalesco da história do Reino Unido – ou dos Estados Unidos, destino final do navio britânico. Eles tocaram sem parar até que o deck se inclinasse como um tobogã, e a estrutura do transatlântico finalmente rompesse. Nenhum sobreviveu.

Estamos, num loop, vivendo este instante há séculos: sambando ao lado do precipício. A iminência do desastre nunca nos deixou melancólicos ou estragou qualquer festa por aqui, da corte ao quilombo. Muito pelo contrário: é esperando por ele que requebramos ao som do tamborzão de canhões e fuzis, entupimos as cavidades com álcool e psicotrópicos e gastamos até o último centavo do cartão de crédito e do cheque especial. Nosso hedonismo sempre foi de guerra e naufrágio.

Tal catarse nos faz rebolar até o meio-fio de fronteiras entre territórios ocupados, ameaçados, sitiados, em disputa permanente desde séculos antes da primeira UPP, quando portugueses corriam o risco de ser comidos no espeto por tupinambás canibais aliados de corsários franceses na praia do Flamengo – ao som da marcação de um surdo, talvez?

Ficando doidão para não ficar doidão, cada ano com mais fúria, o brasileiro encontra no carnaval algo mais do que a dissolução comum a festas orgiásticas e rituais religiosos. Pois aqui, além das explosões da superfície, há também um sentido de ordem que só olhos treinados podem perceber.

É como se um conjunto de circunstâncias que impossibilitam a convivência entre os homens de forma trágica se realinhasse, apenas durante o Carnaval, com um resultado milagrosamente harmônico. É quando nossas faltas viram tal máquina perfeita, de pura felicidade. Um caminho aberto por onde, juntos, podemos ultrapassar o caos. Até depois desse governo – até depois do próximo.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

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